sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O OLHAR DOS OUTROS



“ Que privilégio peculiar tem esta pequena agitação no cérebro que chamamos pensamento” David Hume

“A beleza das coisas existe no espírito de quem as contempla” David Hume


Escuto rádio desde pequeno. O rádio fez-me ver o que  não enxergava sem precisar abri-lo . Tinha um tio radialista e sabia onde ele ficava quando o escutava, muitas vezes, o visitava. Não tinha a ilusão de seres dentro daquele objeto falante, mesmo assim, eu via tudo. Era como minha mãe, que sabia ler nos meus olhos o que eu fazia. Que mistério! Só mais tarde, por morar numa pequena cidade do interior, descobri que as pessoas contavam, o que ela dizia ler e ver em meus olhos.
Trabalho com ultra-sonografia que me permite uma outra visão, um ver através de. Mecanismos físicos , energia, convertem ondas sonoras de diferentes refrações em ondas luminosas. Passo o dia a viajar pelo corpo humano com os olhos na tela por onde passam múltiplos órgãos, fetos, fluxos diversos... Não raro, tenho pacientes cegos e mantenho as descrições como se eles estivessem vendo, e sei que eles vêem com suas visões peculiares, sensações, talvez parecida com a que desenvolvi na infância para enxergar o mundo mágico do rádio. Não me surpreendo mais, com os acompanhantes agitando freneticamente as mãos no ar em negação, e depois, como finjo não notar, sussurram : Ela ou Ele é cego. Não enxerga nada. No final, os cegos sempre enxergam , cada qual a sua maneira, precisamente, todos os órgãos descritos. Muitos enxergam pela primeira vez.
A medicina me faz conviver diariamente com dores, muitas, maiores que a minha. Mas há dias em que todas as dores, não são maiores que a minha, e reconhecer isto me alivia. O teatro me dá o presente. Ser outros e eu mesmo. O médico ensina o ator e o ator ensina o médico. Assim, crio vozes diversas, partituras vocais, mímicas múltiplas quando médico para as descrições dos exames que realizo, para que os meus encontros se tornem interessantes e verdadeiros, como num palco.
Numa aula de teatro, usei uma boneca para uma instalação que hoje utilizo na clínica para mostrar as posições do feto sobre o ventre materno. As pacientes têm uma outra dimensão da visão que se reproduz na tela pontilhada do ultra-som, todas conseguem enxergar seus fetos internamente.
Minha boneca é um sucesso, não só para as gestantes, mas todos que entram ficam curiosos para saber o por quê da pequena notável sobre o aparelho. Já sou conhecido como o doutor da boneca. E o lúdico da infância que guardo comigo agora adulto me permite sempre enxergar além.


Foto e desenho Fabricio Matheus

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