segunda-feira, 14 de setembro de 2009

EL DIA EN QUE ME QUEIRAS e meu aprendizado no teatro

Vosotros, comunistas, os habéis
acostumbrado a exaltar sin amor,
a denigrar sin odio.
(Pier Paolo Pasolini, Las cenizas de Gramsci)

Para Reinaldo Maia



A primeira vez que assisti o El dia em que me queiras de José Ignácio Cabrujas com o grupo Folias, fiquei estupefato, tinha presenciado tudo aquilo na minha recém viagem à Russia , que não era mais a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A perda das utopias, a manutenção do status-quo, tudo era verossímil com o que tinha vivenciado , e a força do grupo, a interpretação visceral da Bete, tão grande, com uma boca vermelha enorme e um vozeirão.
A segunda vez que revi o El dia, já havia assistido ao Otelo e conhecia a Bete que tinha sido minha professora na escola de teatro e agora amiga da vida e colega de arte e pedi autorização para ajudá-los na coxia, queria muito aprender a feitura do universo teatral , viver o teatro e ali naquele espaço e com aquele grupo e aquela peça , não havia nada mais ideal. Felizmente ela me disse : -Sim.
Quando cheguei pela primeira vez como um peixe fora d’água, estranhei o teatro vazio, sem os cenários. Apresentei-me de pronto ao Bira e ao Carlão. Segui o Bira arrumando os móveis em cena e logo encontrei a Simoni. Aos poucos os atores e a equipe técnica foram chegando, fui lhes apresentado formalmente pela Bete. No camarim principal , eles iam deixando o cotidiano enquanto se maquiavam e vestiam a fantasia dos personagens em meio a conversas sobre a peça , sobre suas vidas e a vida dos outros. O Atílio ou o Carlão vinha avisar, alertar do horário:- falta tanto...
Pouco antes de abrir a porta ao público, reuniam-se em torno do piano para um aquecimento conjunto passando determinadas músicas da peça , ou simplesmente um aquecimento vocal. Uns se alongavam , outros já haviam se alongados, cada um com sua preparação particular e única. Depois voltávamos para a coxia, cada ator se posicionava nos seus devidos lugares, muita Merda !!! para todos e com todos e o espetáculo começava...
O Maia sempre chegava cedo, já estava vestido, maquiado , comendo maçã , às vezes já tinha até se alongado no seu colchãozinho azul. Sempre falando sobre política e a formação social do ator, que entre conversas do cotidiano, eram seus temas favoritos.
Procurava sempre deixar o pouco que me cabia, que era colocar os cigarros da Bete, suas bijuterias e seus vestidos nos locais marcados, para que pudesse usufruir o máximo de tempo observando, maravilhando-me com as transfigurações pessoal de cada um deles na frente do espelho mágico. Falava-se de tudo, sobre tudo, com muita seriedade e diversão. O Bruno era o mais quietão, perdia as vezes só de mim. O Flávio sempre falante, contando algo. O Dago organizadíssimo com minúcias e detalhes incríveis. Ficava mais com as mulheres, a Simoni, a Bete, a Patrícia e a Imyra. A Pata sempre pronta para resolver os problemas. A Imyra sempre lendo ou ouvindo música. A Simoni sempre com uma pitadinha de boa ironia ou algum assunto sexual , a Bete densa e protetora dos animais , indefesos e injustiçados.
Às vezes o Marcão fazia breve reuniões com o elenco e indicava caminhos, revia marcações:- Tal hora, quando entra o Gardel na casa dos Ancízar é a mudança essencial da peça, ela toma outro caminho...entre outras coisas da direção que cabem ao diretor. Todos se conversavam, chamavam-se a atenção para determinada cena, procurando aprimorar a encenação e a troca entre eles no palco e com o público. No intervalo o Atílio vinha dar o feed-back, sugerir mudanças ou aprovar o que se via.
No outro camarim, à esquerda e frontal, denominado Senzala, ficava o Demian, o Val e o Bira. O Demian é figura total, tão livre só de cuequinha nos aquecimentos, sempre com tantas piadas, é o humor em pessoa. O Zeca dava a luz na real, sua esposa estava grávida neste período; e sempre tinha as visitas dos membros do grupo como o Aílton, a Nani, o Danilo e outros tantos que me perdoem se não os cito.
Com o tempo, as intimidades e os suores foram me aproximando cada vez mais dos atores e dos personagens. Muitas vezes conversei sozinho com o Gardel, a Maria Luiza, a Elvira, o Pio, o Plácido, a Matilde e o Lepera. As frases dos personagens foram se incorporando na minha vida , no meu cotidiano. Um momento sublime era quando junto com o Flávio e o Bira, eu soltava a fumaça do trenzinho que trazia Gardel à Caracas. Eu via o avesso, o lado, o fundo e a frente do espetáculo e o avesso do avesso. Inúmeras vezes sentado em um canto eu observava meticulosamente o tempo, os tempos, a reação com a platéia, as luzes da ribalta e agradecia pois estava exatamente onde queria estar naquele momento: No TEATRO. Nestes instantes realizava-me vivendo o sonho de criança que havia sido e a ela voltava pleno.
Todos do Folia me receberam de braços abertos como uma família e sempre que volto ao Folias para assistir a outros espetáculos, como Orestéia , Cabaré da Santa, Querô, Cardênio , além de ser recebido com festas , sinto-me em casa, protegido e amado sem ironias vãs e intenções outras que não eu mesmo. No teatro, na coxia, no trabalho dia-a-dia desta arte , quando feita com o coração e a alma, há uma aproximação que dispensa sobrenomes, uma cordialidade indecente, uma afeição que aproxima: É o humano mais que humano. Jamais haverá mesura com o aprendizado de vida e arte que tão generosamente tive com eles. Nesta época na escola de teatro estudava e montava o Rei de Ramos do Dias Gomes, cuja obra foi organizada pelo Antonio Mercado que traduziu e apresentou o texto do El dia ao Marcão, coincidências...
Tenho tantas e tantas histórias comigo guardadas na gaveta da memória , do grupo, do público, do mundo vasto que é estar no Folias que poderia escrever um livro e ao mesmo tempo não há palavras suficientes para descrever o que se passou comigo neste templo que repito, considero minha casa.
Posteriormente nos festivais do Folias quando a El dia voltava em cartaz , eu procurava sempre dar uma espiadinha, voltando para ajudá-los e me ajudar. Teve um final de ano que não consegui ir, talvez por esgotamento pessoal com outra peça e trabalho e por medo de voltar à nós, àquilo que amamos e aprendemos e as vezes nos dói reencontrar dependendo do momento vivido.
Graças aos Deuses, estive com eles nas últimas apresentações, nos atualizamos e novamente aprendi e diverti tanto quanto da primeira vez, com outro olhar, novamente estava com um grupo de pessoas que entraram na minha vida de uma forma que só o Zé Celso sabe explicar , não explicando, fazendo. Neste período pela primeira vez eu li a peça nua e crua. E foi admirável rever os tempos dos atores, a musicalidade, a criação do que é imaginado em palavras e o Marcão transformou em imagens, a porta aberta do Folias com as cortinas ao vento para a rua Ana Cintra em Santa Cecília.
Estão todos comigo, as falas como havia escrito. A Maria Luiza dizendo: Hoje eu sei de mim. O Gardel: É uma maneira de viver... sinto até o cheiro de patchuli da casa dos Ancízar .As irmãs sentadas juntas aos pés do sofá encapado de branco, as músicas, a Internacional Socialista que melodicamente soa da caixinha de música e termina o espetáculo e o mistério da vida que fez literalmente o Pio/ Maia sair subito de cena .
As palavras não me bastam...respiro fundo e volto a sonhar com o que vivi e a confortar minha alma que faz a mesma festa , logo após o prólogo de Pio Miranda e Maria Luiza, quando os outros atores seguem em festa e tremulando bandeiras assim que a Bete/Elvira grita: - Matilde trás o PÃO...

Um comentário:

  1. Que delícia de viagem pelos bastidores do teatro! Que paixão pelo teatro você consegue transmitir com suas palavras! Que emoção vivenciar tudo isso tão de perto! Adorei! Estive com você neste espetáculo há alguns anos e gostei ainda mais dele agora depois de caminhar por suas coxias. Parabéns, Fabrício!

    ResponderExcluir