“A imperfeição é nosso paraíso.
E nesse travo amargo, o prazer,
Já imperfeito arde tanto em nós,
Está palavra falha, obstinada.”WStevens
Eu sou feio. Gostaria de ser bonito, mais alto, nem digo loiro
e com olhos azuis, poderia ser um moreno belo. Tenho orelhas grandes, nariz
redondo e grande e olhos grandes... Fui uma criança obesa, fiquei magro e estou constantemente fazendo regime.
Comecei a praticar esportes tardiamente, e hoje já faz parte da minha rotina.
Por outro lado, se tivesse nascido belo, não seria quem sou hoje. Talvez não
tivesse a inteligência, ou melhor, a
enorme curiosidade de saber e conhecer tudo e todos.
Minha vida talvez poderia ter sido mais fácil, se além de
belo , eu fosse um cara normal, casasse , tivesse filhos... mas tive que lidar
com minha sexualidade e me aceitar. Talvez se não tivesse passado por isso ,
também não seria quem eu sou hoje.
Hoje posso dizer que gosto de ser quem eu sou, e ainda ,
sinto-me belo. Tive pais que me amaram e nos amamos. E isso fez uma enorme
diferença em ser quem eu sou. Hoje posso dizer que sou feliz, tendo passado por
momentos de infelicidades.
Mas tudo isso comecei a pensar enquanto no assento 7 A,
do vôo AF 166 Paris –Bangkok , lia o
Livro de Andrew Solomon:- Longe da Árvore, pais , filhos e a busca da
identidade.
Já tinha passado dois dias em Paris, e foi exatamente em
Paris quando fiz o estágio em Medicina Fetal, que me senti parte de meus pais,
das árvores que compõem a minha família.
Se há uma coisa que não sinto é saudade deles. Isto não quer dizer que não os amo, pelo
contrário, eles estão cada vez mais em mim.
Mas todas as minhas angústias , minhas neuras eram nada, pertos das histórias que lia, sobre pessoas e
pais que tiveram que lidar com surdez, nanismo/anões, Síndrome de Down,
autismo, esquizofrenia, estupros, crimes, transgêneros e etc... um grupo à margem
e longe da árvore.
Não que minhas angústias, e o sofrimento que senti fossem
desmerecidos e não autênticos , foi a minha história e a minha dor, algo que me moldou e tornou-me quem eu sou. Ao mesmo tempo, saía de Paris, onde tinha
exatamente feito um estágio em Medicina Fetal e genética, e estes casos `a
margem, eram o meu trabalho, o meu aprendizado.
Perdido na turbulência de meus pensamentos e leitura, ouço
anunciar que estavam precisando de um médico. Se houvesse algum , que se
identificasse de pronto.
Sem hesitar, apresentei-me , a poucos passos de onde estava
sentado e a paciente já estava lá. Contou-me sua história de antecedente de
flebite, trombose e embolia pulmonar há 10 anos e que sentirá uma dor aguda na
perna esquerda.
Enquanto a examinava, um senhor francês se apresentou como
médico e escutou atentamente o caso de Anne. Eu comentei o caso com meu colega médico, o que eu achava e qual
a conduta. E continuamos a conversar com Anne., por coincidência, ela era
francesa e morava em Paraty. Começou a falar em português e ora em francês. As
comissárias e eu mesmo, por respeito ao colega francês por ser mais velho,
disse que se ele quisesse , ele assumiria o caso. Aqui faço um parênteses,
talvez por um milésimo de segundo ,eu tenha sentido inferior ao meu colega. Mas
o senhor francês , disse em tom afirmativo, que Anne estava melhor sob meus
cuidados , e que ele não lembrava da dose de nada, ao que Anne já sabendo que
eu morava em São Paulo, também disse que a deixasse em meus cuidados.
Terminando de examinar Anne,
e após medicá-la, fiz algumas recomendações. A dor parecia-me mais
muscular, que venosa, apesar de seu
antecedente. Dei as devidas orientações. Ela tinha família em Bangkok e
seu cunhado era cirurgião vascular. Falou que iria fazer o ultra-som com Doppler
dos membros inferiores na mesma manhã para ficar mais tranquila.
Resolvido o caso , o
colega francês me parabenizou, começamos a conversar e ele fora médico no mesmo
hospital em que eu fizera o estágio em Medicina Fetal.
Uma das comandantes solicitou minha identidade médica, e que
eu fizesse um breve relatório. Anne e outros funcionários da aeronave vieram me
agradecer e o comandante geral disse que a companhia me oferecia quantidade de
milhas suficiente para um novo vôo São Paulo-Paris ida e volta.
Fiquei muito feliz, mais do que a passagem, pelo
reconhecimento e respeito que senti por
todos. E mais ainda , pela admiração que me mostrou o colega médico francês.
Reencontrei Anne na fila da imigração , novamente
agradeceu-me , tinha dormido desde então e não sentia mais dor. Contei-lhe que
também era fotografo e conversamos do Paraty em foco.
Minha guia , recebeu-me com um Bom Dia em português, outra
coincidência. Perguntei onde ela aprenderá a língua e ela respondeu que morou no Brasil, em Goiás,
precisamente em Rio Verde e que visitou várias vezes Itumbiara. Como o mundo é
pequeno e tudo se conecta.
Após um breve descanso
no hotel, depois de 12 horas de vôo, e fuso horário, já reestabelecido
saí para conhecer Bangkok, teria o dia livre, fiz um plano para visitar o que não estava incluído no tour guiado e mais algumas dicas de Dara.
Antes de terminar o primeiro quarteirão, vendo um templo
hinduísta e barracas com coroas de flores coloridas penduradas, escuto:- Bonjour, Monsieur le Docteur!
Foto e Arte: Fabricio Matheus