quinta-feira, 17 de outubro de 2013

AF166 PARIS-BANGKOK



“A imperfeição é nosso paraíso.
E nesse travo amargo, o prazer,
Já imperfeito arde tanto em nós,
Está palavra falha, obstinada.”WStevens


Eu sou feio. Gostaria de ser bonito, mais alto, nem digo loiro e com olhos azuis, poderia ser um moreno belo. Tenho orelhas grandes, nariz redondo e grande e olhos grandes... Fui uma criança obesa, fiquei magro  e estou constantemente fazendo regime. Comecei a praticar esportes tardiamente, e hoje já faz parte da minha rotina. Por outro lado, se tivesse nascido belo, não seria quem sou hoje. Talvez não tivesse a inteligência, ou  melhor, a enorme curiosidade de saber e conhecer tudo e todos.
Minha vida talvez poderia ter sido mais fácil, se além de belo , eu fosse um cara normal, casasse , tivesse filhos... mas tive que lidar com minha sexualidade e me aceitar. Talvez se não tivesse passado por isso , também não seria quem eu sou hoje.
Hoje posso dizer que gosto de ser quem eu sou, e ainda , sinto-me belo. Tive pais que me amaram e nos amamos. E isso fez uma enorme diferença em ser quem eu sou. Hoje posso dizer que sou feliz, tendo passado por momentos de infelicidades.
Mas tudo isso comecei a pensar enquanto no assento 7 A, do vôo AF 166 Paris –Bangkok ,   lia o Livro de Andrew Solomon:- Longe da Árvore, pais , filhos e a busca da identidade.
Já tinha passado dois dias em Paris, e foi exatamente em Paris quando fiz o estágio em Medicina Fetal, que me senti parte de meus pais, das árvores que compõem a  minha família. Se há uma coisa que não sinto é saudade deles.  Isto não quer dizer que não os amo, pelo contrário, eles estão cada vez mais em mim.
Mas todas as minhas angústias , minhas neuras eram nada,  pertos das histórias que lia, sobre pessoas e pais que tiveram que lidar com surdez, nanismo/anões, Síndrome de Down, autismo, esquizofrenia, estupros, crimes, transgêneros e etc... um grupo à margem e longe  da árvore.
Não que minhas angústias, e o sofrimento que senti fossem desmerecidos e não autênticos , foi a minha história e a minha dor, algo  que me moldou e tornou-me quem eu sou.  Ao mesmo tempo, saía de Paris, onde tinha exatamente feito um estágio em Medicina Fetal e genética, e estes casos `a margem, eram o meu trabalho, o meu aprendizado.
Perdido na turbulência de meus pensamentos e leitura, ouço anunciar que estavam precisando de um médico. Se houvesse algum , que se identificasse de pronto.
Sem hesitar,  apresentei-me , a poucos passos de onde estava sentado e a paciente já estava lá. Contou-me sua história de antecedente de flebite, trombose e embolia pulmonar há 10 anos e que sentirá uma dor aguda na perna esquerda.
Enquanto a examinava, um senhor francês se apresentou como médico e escutou atentamente o caso de Anne. Eu comentei o caso  com meu colega médico, o que eu achava e qual a conduta. E continuamos a conversar com Anne., por coincidência, ela era francesa e morava em Paraty. Começou a falar em português e ora em francês. As comissárias e eu mesmo, por respeito ao colega francês por ser mais velho, disse que se ele quisesse , ele assumiria o caso. Aqui faço um parênteses, talvez por um milésimo de segundo ,eu tenha sentido inferior ao meu colega. Mas o senhor francês , disse em tom afirmativo, que Anne estava melhor sob meus cuidados , e que ele não lembrava da dose de nada, ao que Anne já sabendo que eu morava em São Paulo, também disse que a deixasse em meus cuidados.
Terminando de examinar Anne,  e após medicá-la, fiz algumas recomendações. A dor parecia-me mais muscular, que venosa, apesar de seu  antecedente. Dei as devidas orientações. Ela tinha família em Bangkok e seu cunhado era cirurgião vascular. Falou que iria fazer o ultra-som com Doppler dos membros inferiores na mesma manhã para ficar mais tranquila.
Resolvido  o caso , o colega francês me parabenizou, começamos a conversar e ele fora médico no mesmo hospital em que eu fizera o estágio em Medicina Fetal.
Uma das comandantes solicitou minha identidade médica, e que eu fizesse um breve relatório. Anne e outros funcionários da aeronave vieram me agradecer e o comandante geral disse que a companhia me oferecia quantidade de milhas suficiente para um novo vôo São Paulo-Paris ida e volta.
Fiquei muito feliz, mais do que a passagem, pelo reconhecimento e  respeito que senti por todos. E mais ainda , pela admiração que me mostrou o  colega médico francês.
Reencontrei Anne na fila da imigração , novamente agradeceu-me , tinha dormido desde então e não sentia mais dor. Contei-lhe que também  era fotografo  e conversamos do Paraty em foco.
Minha guia , recebeu-me com um Bom Dia em português, outra coincidência. Perguntei onde ela aprenderá a língua e  ela respondeu que morou no Brasil, em Goiás, precisamente em Rio Verde e que visitou várias vezes Itumbiara. Como o mundo é pequeno e tudo se conecta.
Após um breve descanso  no hotel, depois de 12 horas de vôo, e fuso horário, já reestabelecido saí para conhecer Bangkok, teria o dia livre, fiz um plano para visitar o  que não estava incluído no tour guiado  e mais algumas dicas de Dara.
Antes de terminar o primeiro quarteirão, vendo um templo hinduísta e barracas com coroas de flores coloridas penduradas, escuto:-  Bonjour, Monsieur le Docteur!

Foto e Arte: Fabricio Matheus