sábado, 16 de fevereiro de 2013

A SUPREMA FELICIDADE


"....Vá conheça tudo que não pude oferecer.Vá ver a vida adormecida nos seus olhos, pela avenida ao encontro das ilusões...e quando você se cansar , das coisas que conhecer, traga seu corpo cansado, descanse em paz nos braços meus...."Wando.


Ontem assisti um show da Angela Maria, baluarte da música brasileira, uma história  de uma época e épocas. .. Meu avô já gostava da Sapoti na era do Rádio, meus pais  continuaram seu gôsto, meu pai tinha discos e depois cds...
E foi assim que cresci escutando os grandes cantores brasileiros, as grandes vozes pré bossa nova.... Assim todos os dias, minha casa era invadida pela voz e uma canção que geralmente cantava o  Amor, Perda, Reconquistas, Saudades e a Vida...
Sempre que estas canções preenchiam o ambiente, minha mãe dançava, às vezes sozinha , às vezes com meu pai e comigo e foi assim que aos poucos eu também fui dançando com minha mãe, com meu pai e sozinho...
Meu pai era funcionário do Banco do Brasil, minha mãe diretora de um grupo escolar estadual,. O mundo para mim era a minha cidade, Itumbiara.
Passava férias no Rio, Salvador , onde moravam os tios, mas era em Itumbiara que a minha vida acontecia , onde  eu crescia e  nada mais importava...
Meu pai também era o diretor do clube tradicional da cidade, O Recreativo, cujo salão anos 50 tinha grandes janelas com vista para as piscinas e para o rio  Paranaíba que banhava a cidade e dividia os Estados. ..O mundo do outro lado do rio existia, mas parecia distante do que acontecia na cidade.
Todo o mês tinha um baile, às vezes, com grandes cantores , Nelson Gonçalves, Silvio Cesar, Elizeth Cardoso... Tinha os bailes das debutantes, os carnavais com as marchinhas inesquecíveis...
Um dia , marcou-se um baile , e quem cantaria seria a Angela Maria. Minha mãe poderia perder tudo, menos um baile com a Angela Maria e desde o anúncio, já tinha-se a mesa reservada, e começava os preparativos em busca da fazenda de seda para fazer o mais bonito vestido. Minha mãe gostava de um pouco de brilho, mas o vestido, além de combinar com seus olhos verdes, tinha que dançar, conforme a música e o andar, seus vestidos longos voam como pássaros ao ouvirem música, os vestidos dançavam...
Foram meses a espera do baile, e nestes meses como não poderia deixar de ser, a Angela Maria cantou mais na minha casa que os pardais das mangueiras do quintal.
Os bailes eram proibidos para crianças, tínhamos que dormir cedo,  com o som do mundo adulto longe dos nossos ouvidos , por mais que esforçassemos para alcançar os segredos  das conversas , os risos  que ficavam nas mesas com cervejas , whisky e cigarros...Para eles tudo, para nos: - nada!. Como eu já achava tudo injusto , e foi assim que bradei , que eu queria ir no baile da Angela Maria .
O primeiro esboço do meu desejo, pareceu bobo e mais uma tolice de uma criança, mas mantive-me firme, disse que não iria a escola e outras chantagens, não é assim que funciona? E por fim, meu pai disse que me levaria. Eu já tinha um terno de casemira inglesa que usava nos casamentos e quando era convidado para ser porta-aliança.
Parece que passou-se anos,  conversas ao telefones, segredos dos vestidos, sapatos, até que o bendito dia do baile chegou. Os preparativos , eram  rituais, fazer o cabelo, maquiagem, passar o perfume francês “Heure intime”, e colocar as joias... o colar e brincos de pérolas, "romeu e julieta" , o relógio de ouro, o solitário ao lado da aliança...tudo era como num filme em câmera lenta...A entrada no carro, e o percurso que passava pela praça central, a matriz... estacionar, descer sem estragar o vestido, e com todo o cuidado para não quebrar os saltos altos... E eu estava ali, vivendo tudo, enquanto meus amigos e primos dormiam...
A entrada no salão , faltava somente ser anunciada como nos bailes reais. E foi quando minha mãe, de braços dados ao meu pai, pegou a minha mão e todo  meu pequeno corpo cresceu e empinou-se numa postura que conhecia dos filmes das  matinês e do que ela própria tinha me ensinado.
Um burburinho quase musical sobre os últimos acontecimentos, preparativos e banalidades até o anúncio  da entrada magistral da orquestra, quando começava-se o baile e os primeiros casais povoavam o vazio do salão.
Para dançar eram combinações de ritmos; tinha o ritmo do casal, o ritmo do casal com a pista e os outros casais e um ritmo do próprio salão que parecia girar e girar ...A angustia da espera e finalmente, entra a Angela Maria, aplaudida de pé, depois da primeira música, o importante era dançar...
Meu pai tirou minha mãe para dançar e fiquei admirando tudo como num sonho. A diva toda dourada com a mesma voz que nos enebriava em casa. Todos encantados , dançando, bebendo e fumando... tudo muito... as luzes desenhavam as nuvens de fumaça em cima da pista que agora mal se encontrava um lugar ao sol, para quem quisesse dançar.
De longe vi meus pais caminharem em minha direção. Minha mãe com a outra mão segurava de leve a ponta do vestido que voava como ela queria. Sem dizer-me uma palavra, novamente ela pegou-me pela mão e fomos dançar .... Minha mãe com seu vestido alado e meu terno de casemira inglesa...E foi aí que minha mãe revelou-me em segredo:- Perguntou-me se eu estava pronto. Que tinha que sentir a música  e voar...  dançar era muito mais do que eu fazia em casa. Era escutar a música, sentí-la e   sem voar, voar...
E voamos!Minha mãe e eu, que ali,  senti-me o mais feliz de Itumbiara, já um quase homem, mesmo não alcançando a altura de minha mãe. A  Angela Maria desapareceu e ficou só sua voz e movimento... circulamos o salão a ao passar pela mesa onde estava meu pai, ele tomou minha mãe de meus braços e continuaram pelo salão. .. Minha mãe só sorriu-me e no seu sorriso ela dizia que sim, que eu estava pronto!
Eu meio que perdido, fui caminhando sozinho até as enormes janelas que davam para as piscinas e para o Rio, de costas para a Angela Maria, que cantava Ai Mouraria, escutando “...do homem do meu encanto, que me mentia, mas que eu adorava tanto... Amor que o vento, como um lamento levou consigo, mas que ainda agora ,  e a toda hora trago comigo...”, era um fado, cantado como bolero, falava de amor , saudade., coisas que ainda não entendia, mas ali  só , após ter voado, dançado com minha mãe, o meu terno de casemira inglesa impregnado com o seu perfume.. eu vi algo além do rio, que só hoje acho que  entendo , que era tudo aquilo que a Angela Maria cantava. Era o drama da vida.
Naquelas piscinas, no rio , já tinha morrido pessoas, mas tinha algo mais que a morte, algo mais na vida, que até hoje procuro entender, mas às vezes, o mistério da vida é muito mais simples.... e antes de pensar o que contar para os meus colegas, eu sorri para o mundo, para os rouxinóis nos beirais,  pois descobrirá que voava dançando....
No domingo, depois do baile, certamente acordaria com a Angela Maria na vitrola  e antes da vida começar . Eu tiraria minha mãe para dançar pela casa como fazíamos... só que  eu já dançava melhor, eu agora voava....

PS:Assistam o filme do Arnaldo Jabor: A Suprema Felicidade.
Arte:Fabricio Matheus