domingo, 13 de setembro de 2009

O DETRÁS DAS COISAS





A casa de minha tia ficava na rua Jacinto Brandão, a primeira perpendicular à direita a rua de minha infância. Tinha um pequeno muro de cimento vermelho que podia sentar, um portão em barras cilíndricas de ferro pintado de preto. Um pequeno jardim retangular em meio ao vermelho cimento onde se plantavam roseiras. A janela e a porta da sala dava para a varanda com dois postes cinzas em diagonais anos 50, logo após o jardim. Dentro da sala via o quarto dela e um corredor que tinha um telefone preto pendurado na parede, que eu ainda não conseguia alcançar, o banheiro e o quarto de minhas primas. O corredor terminava na sala de jantar com uma mesa sempre forrada com uma toalha de crochê e um aparador com toalhinhas de crochê combinando com a mesa de madeira escura. As cadeiras eram azuis combinando com a geladeira. Logo na parede à direita do corredor uma cristaleira onde se escondia um tesouro que minha mãe me fez  descobrir.
A cristaleira era também de madeira com vidros separando os espaços e fundo em espelho que refletia os objetos expostos, a sala de jantar e quem a olhasse. Entre louças e bibelôs, destacavam-se duas xícaras de porcelanas japonesas, com dragões coloridos em alto relevo em tons de cinza, branco, azuis e dourado. Ao virar-se a xícara contra a luz, visualizava uma perfeita gueixa em terceira dimensão.
Estas xícaras tinham sido da mãe de minha tia que criara minha mãe como filha e minha mãe maravilhava-se em criança com o objeto com o mesmo sentimento que eu sentirá ao descobri-lo por suas mãos.Transfigurei-me, parecia que ao virar a xícara contra a luz, não só a gueixa, a mim se apresentava mas todo o seu mundo. Dentro daquela xícara eu descobri um país, construía histórias, viajava para lugares mágicos e só meus. .. Percebi com este tesouro um segredo: O mundo era muito mais amplo que a aparência das coisas, o detrás das coisas era uma vastidão infinda.
Todas as vezes que ia a casa de minha tia, postava-me sempre na frente da cristaleira namorando a xícara e olhando a mim mesmo, até que pudesse pegar o meu tesouro precioso e voltando-o contra a luz vislumbrasse a japonesa e seu mundo que habitavam o fundo misterioso e sem fim.
Os anos se passaram, minha tia ficou doente e padeceu com uma doença que na época não se ousava dizer o nome. Um dia ela pediu-me que restaurasse uma delas que tinha um trincado leve na sua fina borda branca e dourada de biscuit e me deu a outra. Depois antes de partir desse mundo, disse que eu ficasse com elas e as guardasse sempre juntas como lhe fora passado pela sua mãe. Guardo as juntas até hoje, como um precioso tesouro que pelas mãos de minha mãe revelou-me o infinito detrás das coisas, as vezes ainda contra a luz ,a japonesa sempre recatada e discreta me sorri.


Foto Fabricio Matheus

4 comentários:

  1. Que mágico tudo isso! Como pequenos detalhes da infância nos trazem lindas recordações do passado! Minha mãe também tem uma vasilhinha branca de plástico que era da minha avó, em cujo fundo há uma bolinha de vidro. Ao enchermos a vasilha com água, revela-se uma foto PB de uma moça sorridente, como de uma propaganda antiga. Não sei o que era isso, pois o texto impresso no plástico já se apagou com o tempo.

    ResponderExcluir
  2. Fabricio, como e intensa e linda a sua descricao de uma emocao tao profunda e nao particular, ja que essa sensacao tao ricamente descrita eu compartilho, so que nao sabia da propriedade herdada,ficou comigo aquela bota com a imagem do demonio, lembra, doada pela sheila. Acredite. chorei como me é dificil faze-lo, lembrando o quanto tao pouco abre portas e desfigura oportunidades. Te adimiro muito e te conheço tao pouco.

    ResponderExcluir
  3. Faiti, fiquei muito emocionada até chorei como se fosse hoje essa imagem, voce descreveu muito bem, lembrou até do telefone preto do corredor!!!!!
    BEIJOS!!!!!!tita............

    ResponderExcluir
  4. Olá!!!
    É incrível como pequenos detalhes nos fazem voltar ao tempo e relembrar momentos que pensamos estar adormecidos.Adoro ficar lendo o que você escreve, os seus sentimentos ficam transparentes e nos emocionam muito..não para não viu!!!!
    Beijos

    ResponderExcluir