segunda-feira, 19 de julho de 2010

PEDRO BLOCH E UM POUCO DA HISTÓRIA DO TEATRO.



Pedro Bloch (1914-2002), foi médico, foniatra (fonoaudiólogo), jornalista, compositor, poeta, dramaturgo e escritor.
Conheci Pedro , primeiro pelo seus trabalhos com a voz e gagueira.Depois pelas suas novelas , entre elas a adaptação de sua peça teatral Dona Xepa com Yara Cortez e Nívea Maria .As Mãos de Eurídice que foi considerado o primeiro monólogo representado no Brasil, estreiou em 1950, com sucesso imediato e com o ator Rodolfo Mayer, que dedicou quase toda a sua carreira à peça representando mais de três mil vezes,no Brasil e mundo afora principlamente Portugal. Foi traduzida em vários idiomas e representadas por grandes atores como Sean Connery no Reino Unido.Assisti a peça com o ator Oswaldo Loureiro no Cultura Artistica . Seu interesse pelo teatro e dramaturgia nasceu, pois foi um dos primeiros profissionais a tratar e escrever sobre os problemas da voz, principalmente no palco.
Entre os livros infanto-juvenis destaca-se a série Criança diz cada uma , Miro Maravilha, O menino que inventou a verdade, Rafa, bom de bola.No teatro , destaca-se As mãos de Euridice, Dona Xepa, O sorriso de Pedra,Irene. Livros médicos: Você quer falar melhor? , Divulgando Problemas de Voz e fala, Como curar a Gagueira , Comunicação Oral da Criança e do Adulto.
Conheci pessoalmente o Sr.Dr. Pedro Bloch numa bienal do Livro em São Paulo no final dos anos 80. Neste dia, todos queriam o autógrafo do Marcelo Rubens Paiva que era sucesso com Feliz Ano Velho.Assim pude conversar à vontade e aprender com sua generosidade e palavras. Um grande homem que merece ser lembrado. De suas histórias, a que guardo, lembro e releio sempre com muito carinho é a que reproduzo aqui: Carminha do livro Criança diz cada Uma (1), que têm um pouco da alma do teatro.

CARMINHA
Cheguei a Porto Alegre para assistir à estréia de uma peça minha. Ao entrar nos bastidores do teatro Coliseu, uma turma de amigos e artistas veio receber-me. Quando pensei ter cumprimentado toda gente,surge uma mãozinha miúda, uma mãozinha acompanhada de um sorriso encantador, e vejo, diante de mim , uma menina de sete anos.
- Boa tarde- diz ela- Meu nome é Carminha. E o seu?
- O meu é Pedro. Posso pegar na sua bochechinha?
-Pode.
Belisquei com os dedos em pinça aquela linda bochecha.
- Pra que é? Perguntou ela , meio espantada.
- Pra dar sorte.
Ela riu baixinho um riso que teriam as bonecas se boneca soubesse rir.
Desde esse instante Carminha passou a ser um problema para mim. Era filha de um casal mais ou menos idoso. O pai era zelador do teatro. Moravam numa espécie de água –furtada do Coliseu. Dos bastidores subia uma grande escada que desembocava no quarto de Carminha.
Do mundo lá fora Carminha não conhecia nada. Só bastidores. E como via atores representando, sabia representar. Como via as girls de revista dançando, sabia dançar espantosamente. Mas o mais incrível é que aquela criança desmoraliza qualquer tratado de psicologia infantil.
Carminha é uma criança sem inibições, alegre, cheia dessa alegria transbordante das crianças felizes. Fala um português corretíssimo e tem uma educação primorosa, uma educação que não percebe direito de onde deva ter brotado.
- Foi o senhor que escreveu “Irene”?- quis saber.
- Sim .Fui eu.
- Eu ri à beça, sabe? O homem não deixa criança assistir, mas eu me escondi lá em cima com a filha do seu Pêra e via a peça todinha.
E concluiu:
- Meus parabéns!
- Obrigado
-Com certeza não me vão deixar assistir a sua outra peça. Não faz mal. Já vi nos ensaios.
-Posso pegar na sua bochechina?
-Pode.
Belisco a bochecha e ela torna a perguntar por quê.
-Pra dar sorte- torno a explicar.
Esqueci de dizer que Carminha só dorme depois que acabam os espetáculos.Naquela noite ela não saiu dos bastidores e no fim de cada ato me procurava:
- Viu que sucesso? O senhor está contente?
- Muito.
- Vai começar o terceiro ato. Eu quero ver.
E saiu correndo.
Carminha tomo conta da alma de todo mundo. Para aquela criança de coração tão afetivo e pronta a entregá-lo, a chegada e a partida das companhias era um suplício. Sofria horrores com as despedidas. Fazia amigos. A amizade durava conforme o sucesso:um, dois, três meses.De repente a companhia fazia as malas e seguia para outra cidade e Carminha ficava sentada naquela imensa escada dos bastidores, à espera de novos amigos. Mas isso não amargara a menina. Pelo contrário. Dera-lhe uma tal riqueza de alma, uma ternura tão grande, que comovia e conquistava de supetão.
De repente Carminha percebeu que no dia seguinte todos iam partir. Para despedir –se da filhinha do ator Pêra, que já ia embarcar naquele dia mesmo, não encontrou palavras. As duas meninas se olharam , se olharam , trocaram expressões mudas e doces, tudo sem dizer nada.
- Uma boa viagem pra você- consegui finalmente, articular Carminha.
E fugiu. Subiu as escadas imensas. Mais tarde soube que passara horas chorando sozinha, um choro quieto, um choro sem gritos, choro pra dentro.
Carminha tem um voz muito doce. Como não pode falar alto nos bastidores (pede-se silêncio!)habituou-se a uma meia surdina que lhe empresta um encanto particular.
-O senhor também vai embora amanhã?
-Vou.
-Não volta?
-Claro!Um dia vamos voltar.
-Que pena não poder ficar mais , não é?
-É mesmo.Posso pegar na bochechinha?
- Pode.
-Obrigado.
Saí com a minha mulher.Era domingo. Todas as lojas fechadas. Onde conseguiríamos descobrir uma boneca pra Carminha?Onde?
Corremos a Rua da Praia.Lá no finzinho descobrimos uma casa de bombons que ostentava em suas vitrines uma série de bonecas extraordinárias. Falavam, andavam, fechavam os olhos, faziam o diabo.
Comprei uma daquelas bonecas e levei-a para Carminha.
Carminha quase perdeu a fala. Pegou a boneca e olhou para mim quase sem poder acreditar.
-É pra mim mesmo?
-É pra você.
Ela se abraçou à boneca delirando de alegria.Não sabia como agradecer.De vez em quando chegava perto de mim e dizia:
-Ah! Mas é muito bonitinha!
Pôs a boneca pra dormir. De quando em quando vinha me perguntar:
-Que dar uma olhadinha nela?
-Quero.Que nome você vai dar?
-Se fosse boneco eu chamava Pedro Bloch. Mas é boneca...Qual é o nome de sua senhora?
-Miriam...
-Bonito nome pra boneca, não é?
- Você acha?
-Acho.
Quando subiu aquela enorme escada, para ir dormir, parou em cada degrau para me mostrar a boneca, como se eu ainda fosse meio dono dela. E sibilava baixinho:
-Ah, mas é muito bonitinha!
Não tive coragem de me despedir daquela criança quando embarquei. Não tive coragem de ouvir gratidão. Mas ela adivinhou nossa partida.Aproximou-se de mim, mostrou a boneca e sem que eu dissesse uma única palavra, apresentou-me a bochecha para um último beliscão, dizendo, sorrindo, mas com os olhos cheios de lágrimas:
-Pra dar sorte!

Arte:Fabricio Matheus
Ilustração: Etienne Delessert para o livro “Contos de Ionesco para Crianças”

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