quarta-feira, 14 de julho de 2010

A MORTE DO PAI DO GUI



Sonhei que o pai do Gui tinha morrido. A noticia me pegara de surpresa . Fiquei aflito pois não gosto de velórios, mas pensei no Gui que é filho único, no seu sofrimento e resolvi dar um abraço no meu amigo, meu apoio, minha condolência.
Não estava só, fui com outro amigo, acho que o Mil. O velório era numa construção moderna de concreto e mármore branco, altos pés direitos e longos corredores e lembrava a arquitetura de Niemeyer. Disseram-nos que o pai do Gui estava sendo velado na última sala. Eu alertei o Mí, para não se impressionar com o desespero , a tristeza e a dor do Gui e que me ajudasse a controlar a situação, como se dizesse a mim mesmo. Caminhavamos lentamente pela pérgola do corredor e parecíamos não chegar. Eu não queria chegar, eu não queria estar ali, queria ir embora.
Para meu espanto , quando olhei o recinto, era um lugar enorme, todo branco, parecia uma galeria de arte , um misto de MAC e Paço das Artes. A iluminação também era de galeria com focos ao redor. Eram duas grandes salas. A  ante –sala toda branca com algumas obras de arte na parede que pude de longe reconhecer um Velasquez, um Emile  Nolde e até um Cy Twombly. Algumas mesas , todas com os tampos brancos e os pés coloridos. As cadeiras jacobsen todas brancas, com algumas pessoas sentadas; jovens amigos do Gui, que em silêncio desenhavam, pintavam, faziam colagens e esculturas . Numa das mesas ao fundo a Vâ, namorada do Gui ,parecia coordenar tudo.
À direita de quem entrava , num púlpito de carrara ,como um corifeu , vestido com uma roupa de dervirches preta e com uma caixa preta com teto em V, com uma cortina de tule branca, preta e chumbo costurados juntos: como um palco. Podia se ver a face do Gui no centro. Não tive nem tempo de pensar. Meu amigo foi ver os quadros e o Gui veio ao meu encontro. Tinha os olhos marejados e vermelhos. Agradeceu imensamente minha presença num caloroso abraço e disse: Fá, que coincidência , meu pai acabou de chegar de viagem e trouxe um presente para você. Até eu achei estranho, mas ele disse que tinha se lembrado de você quando viu o objeto.
Eu não sabia o que dizer, onde colocar as mãos. Constrangido como sempre fico em velórios, decidi perguntar como ocorrerá a repentina morte e o por quê em busca de uma explicação que não se explica. O pai do Gui sempre foi um homem saudável, sem doenças prévias, de uma família de longevos.
O Gui disse que nada, que simplesmente chegou em casa e foi a quarto falar com o pai e o encontrou já sem vida, morto. Preparou o velório e perguntou se eu tinha gostado. Eu nada respondia entorpecido que estava. Eu perguntei pela sua mãe e ele me disse que ela estava viajando mas chegaria a tempo. E disse para eu ir ver o seu pai na outra sala, que ele estava bonito e parecia vivo.
Admirado cada vez mais; a outra sala também era de uma brancura que cegava. Não tinha velas, nem cravos ou crisântemos. Nos quatro cantos, tigelas de cristal da Bavária com lilázes e flores de lótus a boiarem. No centro, num futton branco jazia o corpo do pai do Gui. As mãos não repousavam sobre o peito. O corpo em diagonal com metade do tronco fora e os braços erguidos fora coberto com um veludo alemão vermelho e parecia um cristo que as igrejas expõem durante a semana santa. A pele muito corada, de não mais que 33 anos. Nada de roxos, levedos ou rigor mortis.
Agora eu estava acompanhado do primo do Gui e tudo aquilo parecia uma instalação de arte contemporânea. De repente , o pai do Gui começou a balbuciar umas palavras confusas com som de latim arcaico e iídiche. Alguns cadáveres expelem gases depois da morte, mas não era o caso. O primo do Gui gritou, antes que organizasse minha razão: Parece que ele está vivo!
Eu como médico, ajoelhei e tentei pegar sua pulsação que estava fina como numa fibrilação. Encostei meu ouvido no seu peito e auscultei as bulhas cardíacas claramente como numa sinfonia de Respighi, e bradei: Gui seu pai não está morto. Quem foi o louco que diagnosticou sua morte? Chamem uma ambulância?
O Gui estático, emudeceu , só disse: Ninguém, ele não falava nada, estava estático e só podia estar morto.
Arranquei a caixa preta da cabeça do Gui e joguei longe,ouvindo o barulho do espatifar-se no chão , além de quebrar uma das quatro tigelas de cristal da Bavária e escorrer a água entre os lilazes e a flor de lótus pelo recinto como um sangue da côr rubi.
Já no Hospital, o quarto era também todo branco, a cama de metal pintada de branco, com um criado branco e o puxador de alumínio, em cima do criado um antigo termometro de mercúrio e um relógio despertador parado ao meio-dia ou à meia-noite. Os lençóis e fronhas brancos. O pai do Gui tinha tido um pequeno acidente vascular cerebral e felizmente não se lembrava de nada.
Contou-nos que tinha sonhado com um elefante branco alado que voava num céu azul infinito. O elefante transformou-se numa cegonha que trazia no bico um bebê que era o Gui e pousou numa linda praia de brancas areias e pedras de malaquitas, lápis –lazulis e madre-perólas  e água côr de água-marinha.
Quando ele se aproximou não era mais uma cegonha e sim um pelicano que abriu seu bico onde tinha uma plantação de amores-perfeitos. Ele arrancou um púrpura, sentiu um cheiro que não sabia distinguir se mirra ou cardamomo. O amor-perfeito transformou-se num amarelo girassol e foi se pôr no horizonte do mar esmeralda e anoiteceu...
O Gui já tinha se recuperado do choque da não morte de seu pai .Estava sentado à beira do leito,junto ao criado mudo e parecia ter saído da Maison du Cavalier, num terno príncipe de Gales com uma gravata borboleta vermelha, argyle socks e saddle shoe preto e branco. Sua mãe até o momento não tinha voltado de viagem.
Depois de ouvirmos atentamente o sonho de seu pai. Ele disse para o Gui entregar o meu presente . O embrulho com fitas vermelhas, revelou conter uma caixinha de música com um nightingale( adoro essa palavra), um rouxinol de sete cores que cantava “As time goes by”....
Apesar de ter sonhado com velório e morte, acordei com uma sensação leve. Como depois de sair do palco e mirar-se no espelho do camarim, ainda não se reconhecer: - Ficar  por segundos na miragem estonteante que é metade você e metade o personagem e com “As time goes by” na cabeça.
Refiz o que tinha vivido no dia anterior, o que tinha falado antes de dormir e acho que como um grande segredo, decifrei para mim o meu sonho, que guardei na última gaveta da caixinha de música que ganhei do pai do Gui.


Adendo: No dia anterior tinha ido no Paço das Artes visitar a exposição de Ana Elisa Egreja. Vá, veja e tenha bons sonhos.

Arte:Fabricio Matheus

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