quarta-feira, 3 de novembro de 2010

AS QUATRO IRMÃS(Psicoantropologia Fake ) de Caio F.Abreu


"Só que homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade - voltada para um objeto qualquer de desejo. Que pode ou não ter genitália igual, e isso é detalhe. Mas não determina maior ou menor grau de moral ou integridade."

"Penso, com mágoa, que o relacionamento da gente sempre foi um tanto unilateral, sei lá, não quero ser injusto nem nada - apenas me ferem muito esses teus silêncios."

"É dificil aprisionar os que tem asas"

"Penso: quando você não tem amor, você ainda tem as estradas."CFAbreu

Reza não muito antiga lenda que homossexuais masculinos de qualquer idade ou nação – além de bofe , bicha , tia ou denominação similar—dividem-se em quatro grupos distintos. Seriam na verdade, sempre seguindo a lenda, quatro irmãos que atendem por nomes femininos. A saber essa ordem arbitrária não implica cronologia nem preferência:Jacira, Telma , Irma e Irene.
Para começo de conversa , vamos a mais popular delas: a Jacira. Suficientemente conhecida: Jaci.Das quatro irmãs, Jacira é aquela que todo mundo sabe que é homossexual, e ela mesma – que se refere-se a si própria , seja qual for seu nome, sempre no feminino — acha ótimo ser. A Jacira usa roupas e cores chamativas, fala alto em público, geralmente anda em grupos de amigas também Jaciras como ela, todas exercendo o velho hábito de fechar. Como diria Antônio Bivar, é uma pintosa. Uma pintosa assumida, despudorada. Sempre foi bicha, adora ser bicha e, maniqueísta como ela só, continua achando que a humanidade divide-se entre bofes e bicha, categoria esta última na qual inclui. Com orgulho.Superinformada, embora não leia muita(existem Jaciras negrinhas, analfabetas), ela sempre sabe – de orelhada – TUDO que está em cartaz na cidade. Fofocas de televisão são seu forte , principalmente aquelas que insinuam viperinas dubiedades sobre a sexualidade alheia. Ao entrar em qualquer ambiente, uma Jacira sempre é imediatamente notada. O que satisfaz seu rincipal , e talvez único objetivo na vida:aparecer.
Bem menos luminosa e sem graça que a Jacira é : a Telma. Ao contrário da Jacira , a Telma é infelicíssima. Ela bebe . Bebe para esquecer que poderia ser homosssexual. O problema é que, exatamente quando bebe , mais exatamente ainda depois do terceiro ou quarto uísque, é que a Telma transforma-se em homo. Embriagada, Telma ataca. E dramaticamente, na manhã seguinte não lembra de nada. Embora a Telma fique muito erotizada em estado etílico, ela sempre nega que é, e negará até a morte. A única solução pra uma Telma empedernida seria a psicanálise ( que ela a mais doente, acha que não precisa) ou parar de beber. O que , por tabela , significaria também parar de trepar. Pobres Telmas -- categoria da qual países como o Brasil(vide academias de ginástica, futebol , chopadas com o pessoal da repartição, etc) está cheio.
Menos trágica, mais ainda complexa , é a terceira irmã: a Irma. As Irmas não são exatamente infelizes – pelo menos, não tanto quanto as Telmas --, embora bem menos felizes que as Jaciras – que aparentam ser e realmente são felicíssimas. Irma é toda aquela que todo mundo jura que é, incluindo a mãe, a irmã e a esposa(irmãs casam muito)—mas ela mesmo não sabe que é. Não sabe ou finge que não. A Irma dá quase tanta pinta como a Jacira, adota o folclore gay, de Carmem Miranda a Madonna. Há quem diga que as Irmas costumam ser mal-dotadas, impotentes, dessas assim. Pode ser. A verdade é, quando casadas, as esposas das Irmas raramente exibem ar muito satisfeito. Sexualmente satisfeito. Irmas costumam ser afáveis – ao contrário das problemáticas Telmas , introvertidas e depressivas.Adoram Jaciras, apesar destas gostarem de chamá-las , sobretudo em público e aos gritos , de “queridas”.É que toda Jacira sabe – ou supõem – que no fundo toda Irma é tão Jacira quanto ela. Mas como as Telmas, Irmas fogem de definições. E ao contrário das Telmas muito pecadoras, podem até morrer sem se atreverem a provar os prazeres do – para citar uma Jacira clássica—amor que não ousa dizer seu próprio, etc.
Inicialmente limitada a essas três, a lenda recentemente inclui a existência de uma quarta irmã: a Irene. Tão assumida quanto a Jacira, ao contrário desta , a Irene não dá pinta. Ela é, sabe que é, mas não exibe nem constrange. Pode até usar brinquinho na orelha, dar alguma rabanada menos comedida, ou mesmo – de brincadeira – referir-se a si mesma ou alguma amiga no feminino Mas a Irene é tranqüila. Geralmente analisada, culta, bom nível social, numa palavra – Irene parece serena em relação à própria sexualidade. Que é diversificada. Podem tel longos casos, morar junto, ou vivenciarem certas idiossincrasias eróticas. Só gostarem de working class, por exemplo, ou de adolescentes, choferes de taxi ou estudantes de física. Ou de Irenes como elas:são as Irenes lésbicas, bastante comuns e conhecidas, literalmente, como gays. Telmas e Irmas escondem tudo da família, vizinhos e colegas, embora Irma praticamente não tenha nada a esconder. Jaciras não escondem coisa alguma, explicitérrimas. Irenes deixam no ar: se alguém perceber, que perceba. Educação é básico para elas.Serenamente educadas, pois , às vezes até casam. Com mulheres.
Entre as quatro, desgraçadamente as relações são turbulentas. Jaciras, por exemplo, adoram seduzir Telmas.Estas (quando sóbrias, claro) têm medo , pânico de Jaciras. Irenes , por sua vez, nutrem uma espécie de carinho apiedado pelas desventuradas Telmas – e isso até pode resultar numa ardente noite de paixão entre ambas. Da qual naturalmente a Telma jamais lembrará, embora tenha feito horrores. O grande risco que toda Irene corre é apaixonar-se por uma Telma:comerá o pão que o Diabo amassou, até entrar noutra. Com a Irma, de quem Irene também gosta , o risco não é tão grave: Irene sabem que coms as Irmas não rola. E pode assim transformar tudo numa aparentemente saudável “amizade viril”: as duas fingindo , para usar a terminologia antiga, que são bofes. Há quem creia.
Jaciras não simpatizam muito com Irenes, acham-nas “metidas”.A recíproca é verdadeira:Irenes acham Jaciras pintosas demais, apesar de divertidas, folclóricas. E incovenintes. E com imperdoável mania de roubar namorados alheios. Irenes adoram namorar, pegar na mão , ir ao cinema , comer pizza, ver TV – tudo isso together. Já Telmas e Irenes , entre si , são hostis. Talvez uma tema o julgamento da outra, vai saber. Irmas , no entanto, às vezes podem ceder aso insistentes encantos das Jaciras. Existem mesmo certas Irmas que algumas Jaciras – para ódio das Irenes – juram já ter feito. Na verdade, Telmas , Irenes e Jaciras invejam um pouco aquela impressão(nem sempre verdadeira) de pureza que toda Irma passa. Assim como se estivesse por fora de qualquer grupo de risco.
Clássicas ou contemporâneas, cada uma busca apenas essa coisa – o amor: a Ancestral Sede Antropológica. O que pode acontecer são transmutações: Irenes que se ajaciram; Irmas (com tendência etílica) que viram Telmas;Telmas que -- bem comidas – se irenizam ou mesmo ajaciram, etc. As mutações são tantas quanto as do I Ching. Há quem diga que essas novas identidades têm até nome, como as Juremas (Jaciras que se tronam Irenes ) ou Jandiras (Jaciras exacerbadas).
Pode ser. Mas segundo nossos estudos, Jaciras são inabaláveis, intransmutáveis. Jacira que é Jacira nasce Jacira , vive Jacira , morre Jacira. No fundo, achado o tempo todo que Telmas, Irmas e Irenes não passam de Jacira tão loucas quanto elas.
E talvez tenha razão.

Obs: Está crônica escrita pelo Caio com alguns cortes , foi publicada pela primeira vez na exitinta revista Sui Generis em março de 1996.

Foto: Fabricio Matheus do grafite da 23 osgemeos

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