terça-feira, 26 de outubro de 2010

A FESTA






Por que não tentar neste momento que não é grave, olhar pela janela?”Clarice Lispector

“Escrever é ferir quem se ama”Hanif Kureishi

Era sua festa de 40 anos. Estava casada com um outro amigo, tinha filhos e uma linda casa à beira de um lago.Fomos colegas, namorados. Conheci Paris pela primeira vez quando ela era au-pair na capital francesa e eu começava a trabalhar.
Nossa separação foi traumática num primeiro momento, devido a minha sexualidade, nos afastamos e depois com o tempo nos reaproximamos. Estava contente de estar ali pelos seus quarenta anos. Os locais dos convidados foram sorteados aleatoriamente. A maioria dos convidados como ela eram casados, com filhos e talvez com lindas casas como a dela à beira de lagos e montanhas.
Eu ainda solteiro, grisalho, vivia no meu pequeno AP, sem sequer ter um cão. Morava ainda como um estudante. Não tinha faxineira, trabalhava, ia à academia, às vezes viajava.Meu AP sempre uma bagunça. Estava num relacionamento à distancia que me permitia não sentir tão só e me dava segurança e proteção, mas que me fazia e me deixava no meu lugar de solitário. Tinha um certo montante guardado no banco, mas nem de longe conseguiria comprar uma casa como a dela e sequer decorar com o esmero e design com que ela decorou.
Foi legal reencontrar sua família, mas as perguntas e as conversas com o pessoal da minha mesa, logo me deixarão entediado. Por quê não me casei? Por quê isso? Por quê aquilo? Temos isso, aquilo!Queremos comprar isto!Reformar nossa cozinha. Mudar nosso filho de escola. Minhas respostas ficaram cada vez mais monossilábicas e eu queria sumir, desaparecer. O frio e a brisa lá fora me impediam que eu pelo menos tentasse fingir que fumava e saísse por um instante.
Do outro lado de mim mesmo, sem querer, começaram as cobranças internas. Um amargo de ser quem eu era, que por vezes acontece, sem eu mesmo querer.Sabe quando nas festas de final de ano, você é o ultimo dos solteiros.Ou por infelicidade, justo naquele ano seu relacionamento está uma merda. Você sabe que o caminho ;que sua vida atual é fruto de seu desejo e isto pelo menos é um alento.Mas têm algo que insiste em lhe dizer que você é errado. Que suas escolhas foram erradas. E tudo isto acontecia na minha cabeça enquanto aqueles de minha mesa não paravam de falar.
Senti uma náusea estranha, um estranhamento. Eu era um estranho, talvez estranho de mim mesmo. A comida perdeu o sabor. O menu que era elogiado aos quatros cantos da festa não estimulava mais minhas papilas. Eu olhava as pessoas , e por um momento eu só queria sair dali. Fugir, desaparecer. Eu me senti uma criança abandonada, se me abandonasse aos meus sentimentos, choraria aos prantos, desesperadamente. Às vezes me sinto sem objetivo, como se fosse um fantasma  de mim mesmo,  o fantasma dos desejos de meus pais. ... Minha amiga, sempre gentilíssima , vez por outra, vinha me salvar desta tempestade amarga.
Por sorte, os deuses inventaram o vinho. E o vinho da festa era excelente. Mergulhei de cabeça na bebida do Deus Bacco e salvei a noite, ou me afoguei. Dancei muito. Já nem sequer ouvia a música , mas dançava e ria de tudo.Tudo agora era alegria e já não sentia mas o gôsto do vinho, só a sensação do líquido lavando minha garganta. O tempo passou e não notei .Quando dei por mim, eram poucos que restavam. Eu entre os poucos e num alívio me despedi, elogiando a festa.
Mal sei como voltei para casa, devo ter dormido no taxi.Só dei por mim novamente quando acordei no dia seguinte com uma tremenda dor de cabeça, uma ressaca homérica. Era um naufrago de mim mesmo, tonto, nauseado e sobrevivente...

Desenho :Acrílico sobre tela  e desenho estudo para o quadro superior de Silvio Oppenheim






Um comentário:

  1. Às vezes, o melhor a se fazer é evitar estas festas. Ou então, como bem fez você, se entregar aos devaneios etílicos de Baco.

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