terça-feira, 28 de setembro de 2010

NA POESIA DA VIDA A MERDA AINDA FLUTUA....



"Nem uma dôce oração
Nem sermão, nem comício
A direita ou à esquerda
Fala mais ao coração
Do que a voz de um colega
Que sussurra "merda"...Caetano Veloso

“Por que seria admirável que houvesse tanta ansiedade envolvida no momento atual?Há muita coisa em jogo e você sabe que a partir do momento em que suas idéias se concretizarem não haverá mais como voltar atrás.” Este era o meu horóscopo de hoje , e lia sentado na privada. Tenho como hábito levantar , tomar café e ler o jornal no vaso, antes mesmo de escovar os dentes e iniciar o dia. Já é uma mania quase natural . Quando o jornal atrasa e eu não sigo o ritual automático do meu ser:- café-da –manhã, leitura no vaso, escovar os dentes , barbear e tomar banho, parece que meu dia não começou e fico literalmente enfezado.
Sempre leio primeiro as manchetes principais, a parte cultural , econômica , esportes e depois o horóscopo, sempre nesta ordem. A minha vida têm uma ordem quase natural.
Mas hoje amanheci fechado por dentro. Ainda trazia na boca um gosto amargo do vinho da noite, apesar de já estar com o gosto de café. Eu lia o horóscopo que podia me dizer tanto e nada e tentava em vão me lembrar dos meus sonhos. Sei que sonhei com pessoas da minha infância , identificava as pessoas, mas não ligava a história.
Ali sentado no vaso, lendo o horóscopo , já não me lembrava mais das manchetes e acho que não havia nada de especial no caderno de cultura. Eu tinha amanhecido fechado por dentro assim como o dia nublado lá fora. Apesar do relógio que visualizava no criado da cama continuar a correr , parecia que o tempo tinha parado.
Eu estava só, começando mais um dia em que eu amanhecerá fechado por dentro , sem nenhuma vontade de continuar minha rotina. Eu olhava no copo de louça branca a escova de dentes e a pasta , a torneira e pensava : Será que não têm como voltar atrás.....
Eu estava só, como sempre estou neste particular momento do dia. “Não tinha como voltar atrás...” mas e o para frente? Tomei coragem , coloquei o jornal de lado, e vi que minha merda flutuava, isto era um bom sinal.Dei descarga e me olhei no espelho.
Tinha envelhecido e já não enxergava a criança que fora outrora. Escutei o vizinho que tocava alaúde e começava sempre cedo seus estudos com a repetição constante e grave dos acordes barrocos. Ainda com o gosto de vinho da noite que mascarava o café da manhã e sem lembrar dos meus sonhos, lembrei –me do ontem que foi amargo e um gosto doce escorreu de repente desta lembrança.
Ontem enquanto corria eu percebi que havia sido mais feliz sem os meus pais. Não que eles não tivessem sido importantes para a minha formação de família e caráter. Mas os anos que vivi sem eles foram mais felizes que os anos que vivi com eles. Não que meus pais fossem maus ou qualquer coisa assim. A realidade é que meu caminho sozinho foi mais feliz enquanto eu caminhava com eles. Isto me fez perder a ilusão de que meu quarto de infância intacto estaria sempre me aguardando. Eu não queria e nunca quis voltar para ele. Ele já tinha sido. Eu correndo ali naquela rua movimentada no final da tarde e com risco de chuva, perdi a ilusão da infância. Eu olhava no espelho e lembrava e realizava que eu era só. E quando me dei conta da minha condição de ser só, foi que cresci. Eu olhava no espelho e não me reconhecia mais . Eu tinha envelhecido e crescido. Eu era um adulto que trabalhava , pagava as contas e impostos.
Numa corrida contra o tempo, consegui escovar os dentes , tomar banho e saí para o trabalho.
No trabalho enquanto me lembrava que era só. Que eu perdia a ilusão da infância dourada, fiz um exame de uma mulher que seria mãe.O batimento cardíaco do feto ecoou vida em toda a pequena sala de exame.
Entre outros exames e enquanto escrevia este texto e me lembrava do dia que começara com eu fechado por dentro; fiz um exame de um senhor com câncer e com metástases . A vida não tinha explicação. “Há muita coisa em jogo”. A felicidade lânguida era a minha merda flutuando que dizia que eu estava bem de saúde.Olhar seus excrementos é amar. Eu tomava conta de mim com um carinho que com certeza vinha de meus pais. Eu me amava e me amando eu poderia amar os outros. A vida é um morrer a cada dia. E por um instante a etérea noção de que amanhã eu iria acordar só, tomar meu café, ler o meu jornal antes de escovar os dentes,barbear e tomar banho, abriu-me por dentro e me fez sorrir. Esqueci dos meus questionamentos e outras neuras, deixei minhas idéias soltas... para que nada se concretizasse e eu pudesse ter a chance de voltar atrás, pelo menos agora, neste momento, eu queria ainda poder ser um pouco criança e não ter que tomar nenhuma decisão!O passado é ainda a melhor parte do presente e talvez do futuro. Eu não queria pensar e quando eu não penso eu não tenho medo. Estar vivo, sentir- se vivo , já é viver. Eu adulto percebi que minha criança estaria para sempre comigo. E sendo adulto, eu poderia mudar e me mudar.As mudanças certamente  iriam me transformar.Eu teria sempre que crescer a cada dia depois do banho e quando saísse de casa. Isto era uma verdade viva.Assim sereno aceitei a vida, a minha vida.E comecei a pensar: Como será meu horóscopo amanhã?....


Fotos:Fabricio Matheus

Nenhum comentário:

Postar um comentário