domingo, 27 de dezembro de 2009

"EM QUE ESPELHO FICOU PERDIDA A MINHA FACE?"*




Neste natal fui de carro para a casa de meus pais, é um longo caminho, mas quis voltar aos caminhos pelos quais passei toda minha infância, pelos quais cresci, pelos quais confesso que vivi.
Toda a minha vida foi um percorrer esta estrada, da casa dos meus pais , às férias em Pirassununga na casa de meus avós paternos. Presenciei todas as transformações das estradas, postos, cidades que cortam este caminho, que tantas vezes percorri. Um caminho que se foi encurtando com o tempo. Quando pequeno demorava quase um dia. As estradas eram únicas, algumas sequer asfaltadas.Hoje ainda é longo, são oito horas de São Paulo a Itumbiara, mas parece curto.
Saí no dia 24 pela manhã, comecei pela Bandeirantes duplicada, bem sinalizada, ampla, peguei a Anhaguera em Campinas.Passei por Limeira, Americana, Araras, Leme e parei em Pirassununga, terra de meus avós paternos, onde nasceu meu pai. Passei no cemitério, onde repousam meus antepassados, hoje estão ali: Minha avó Ana, que morreu comigo há quase dezoito anos e está cada vez mais viva, como se não houvesse o tempo na memória. Meu avô Fabrício, de quem já escrevi, herdei o nome e o nariz. Meu tio e padrinho Sérgio, mais conhecido como Bolhinha e o Tio Clóvis com quem morei em São Paulo.
Subi a rua Joaquim Procópio, onde eram as casas de minha avó . A mais velha ,hoje é um escritório de Contabilidade e não consegui avistar as Jaboticabeiras que haviam no quintal, que fazia fundo com a dona Maria Bianco. A mais nova, no mesmo quarteirão, hoje escondida pelas árvores da calçada.Consegui ver a janela do quarto de meus avós. Lembro-me de tudo, dos cheiros da comida de minha avó, da varanda com os vasos de antúrios vermelhos, da cadeira onde meu avô passava a tarde contemplando a vida que passava . O corredor, os quartos , a sala, os ajulejos da cozinha. O quintal com a mangueira Borbon ,junto ao muro da casa paroquial.Os canteiros de avencas com os caramujos e o cheiro de mofo e veneno de rato do porão, onde escondi tantos tesouros.
Passei pela Matriz , onde casaram meus avós, meus pais e tios. Do lado esquerdo a Escola Normal onde estudou meu pai, tios e primo. Defronte na praça central com o coreto onde aos domingos íamos tomar sorvete e ver a banda tocar.
Continuando a viagem, passei por Ribeirão Preto, cidade que não para de crescer. Onde fiz a Faculdade de Medicina, residência médica e morei dez anos.Almocei na casa de minha amiga Noemi, que me atualizou sobre as novidades e a cidade.
Passei por Orlândia, São Joaquim, Ituverava.Cruzei o Rio Grande que separa São Paulo de Minas Gerais, agora,pela nova ponte. A antiga de ferro, construída por escravos, fica ao longe à direita. As rodovias de Minas são precárias comparadas com as paulistas, mas hoje de Uberaba à Uberlândia já se encontra duplicada, e o que parecia uma eternidade para se percorrer, se faz mais rápido.
Parávamos sempre nos mesmos postos. O posto das Emas, perto de Guará e São Joaquim da Barra, tinha um pequeno zoológico, com emas, pavões e capivaras, hoje abandonado. O Zebu em Uberaba , que era uma portinha e hoje cresceu, onde comprávamos queijo e farinha. Minha mãe preparava o lanche que era sempre pão com molho de carne moída e coca-cola. Não gastávamos nada, tudo era economia.
Durante a viagem minha mãe , contava as histórias das cidades, igrejas, nos relevos montanhosos, apontávamos a casa do Matusquela, um monstro sem forma, com grandes olhos e boca denteada que nos assombrava à noite. Matusquela ,na verdade, acho que nem ela sabe , quer dizer louco, aloprado. Ela continua a acreditar que é um monstro.
De Uberlândia a Itumbiara a estrada é mão única, cheia de buracos e inúmeros são os carros que se quebram no caminho, há que se ter cuidado. Nesta estrada morreram muitos dos meus familiares. Passei por Monte Alegre de Minas e Canapólis, a terra do abacaxi: 15 abacaxis por 3 reais. Depois de Centralina , já se vislumbra no horizonte ao longe o rio Paranaíba e o estado de Goíás.
Atravesso a antiga ponte pencil Afonso Penna, de mão única e pela beira-rio chego a minha rua:- a rua Tiradentes.Duas esquinas acima, na perpendicular fica a João Manuel de Souza, onde era a casa de minha avó materna , Dona Alzira. Outra casa onde escutei muitas histórias, senti muitos cheiros e tenho lembranças eternas. Hoje mora minha tia madrinha Lindalma. Minha avó repousa só no cemitério da cidade, minha tia a visita todos os dias.Do lado de seu túmulo, há um outro cercado com uma árvore e um banco onde minha tia se junta a suas amigas e passam a tarde com café e pães ao lado de seus mortos e a espera de novos.
Sempre na manhã que saíamos de férias, minha avó Alzira vinha cedo para casa nos ajudar, depois das malas devidamente arrumadas no porta-mala do carro. Nos despedíamos triste, ela ficava cuidando da casa. O olhar de minha irmã e o meu grudado no vidro do carro até perder minha avó de vista, descendo a rua Tiradentes , seguindo viagem pela mesma estrada que me traz e me leva.
Desta vez ficaram no portão, meu pai , minha mãe e minha irmã. Mas, dentro de mim, trago todas as minhas lembranças. Desço a Tiradentes, atravesso o rio Paranaíba e como o rio, sigo meu caminho... O homem é memória e imaginação.

*O título é uma frase da poetisa Cecília Meireles.,  e está em um livro que lí nestes dias, "A Alma Brasileira" de José Vilson dos Anjos. Minha face continua aqui, segura, firme, sem se perder e  com as marcas dos anos que vivi.Continuo sonhando que me perco principalmente por Itumbiara e Pirassununga.Como num paradoxo ou uma equação sem solução, como disse-me uma vez  um amigo escritor, que todos os escritores são mentirosos, portanto....

Fotos : Fabricio Matheus



3 comentários:

  1. Bem bonito! Sempre me repito dizendo que o que vale na vida é o sonho, e as memórias são a riqueza ou herança, como queira, que ninguém me tirará. É um conforto ter o que lembrar com amor, ternura e poder sonhar.

    E, aproveitando, um ótimo 2010 pra você!

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  2. Olá!!!! E eu ficava anciosamente esperando as férias p/ ver se podia ir junto. Todo ano era a mesma confusão, ou seja, convencer o meu pai a deixar eu ir junto. Ficava desesperado de pensar q vcs iam viajar e eu ficaria p/ trás..era sempre a mesma confusão. Lembor dos suspiros da vó Ana..nunca comi nada igual, e as idas no clube de Pirassunuga..lembra???
    Bons tempos esses..ficam na memória, isso é bom, não é verdade?????
    Beijo...

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  3. Olá... Mundos diferentes hoje.... Mas que saudade "Faiti"... rs..
    Não nos falamos há tanto tempo....
    Bom ter notícias...
    Beijos...

    Carolina Andrade

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