sábado, 19 de dezembro de 2009

CARTA AO CONTARDO CALLIGARIS





“...um psicoterapeuta(e ainda mais um psicanalista) que define uma conduta como “desvio” não fala em nome da psicoterapia e ainda menos em nome da psicanálise. Ele fala quer seja em nome do seu anseio de normalidade social, quer seja em nome de seu esforço para reprimir nele mesmo o desejo que parece condenar. Segundo, e mais geral, quem estigmatiza categorias universais , como “os homossexuais”, “os sadomasoquistas”, “exibicionistas” etc., é um atacadista, enquanto a psicanálise trabalha no varejo: a fantasia e o desejo só encontram seu sentido nas vidas singulares.”C.Calliagris


Caro Contardo,

Leio religiosamente as suas crônicas , como se fosse uma sessão analítica, e tenho que ler no jornal.Não têm o mesmo prazer lê-lo na internet. Como leitor de suas crônicas, cheguei aos seus livros.Infelizmente não vi sua peça, mas quero ler e assistir.
Cheguei as suas crônicas pelos comentários de meu terapeuta. Sou médico, ator e minha paixão é a curiosidade pelo SER HUMANO, principalmente Teatro e psicanálise.
Foi um caminho longo chegar ao teatro que é a chama de minha alma, como uma individualização yunguiana. Sempre gostei de teatro e artes em geral e sempre tive medo. Cerceava o teatro como caminhar à beira de um rio ou à beira mar sem nunca me banhar em suas águas, o que aconteceu recentemente e não me afoguei.
Sempre li teatro, e logo no primeiro ano de medicina, deixava a anatomia pelas leituras de psicanálise e Freud. Durante a faculdade tinha quase certeza que faria psiquiatria, obtei pela ginecologia e obstetrícia e hoje sou radiologista.
Não me arrependo do meu caminho, não sei o que serei quando crescer , mas o TEATRO estará presente. A medicina me proporcionou no labor diário uma escuta da dor do outro e condições financeiras para um aprimoramento intelectual e experiências como viagens , amizades e encontros.
Comecei há alguns anos um grupo de leitura de Teatro coordenado pela Barbara Heliodora, líamos Shakespeare, teatro Grego, teatro francês e alemão. Grande parte do grupo era constituída de psicanalistas , membros da Sociedade Brasileira de Psicanálise. Num dos grupos, um dos colegas, da diretoria da Sociedade ,após uma pessoa se servir com o café, limpava sistematicamente a garrafa com movimentos circulares, constantemente.
Resolvi fazer Formação Analítica e uma amiga, a mesma que me levou aos grupos de leitura, indicou meu terapeuta,  e  é também membro da Sociedade , orientou-me procurar o Sedes Sapientiae, que segundo ela era mais “democrático” e “aberto”.
Inscrevi-me na Instituição e a primeira entrevista com o Durval foi Mazzei exemplar e agradável, perguntou-me principalmente o meu interesse pela Psicanálise. Minha segunda entrevista com o Sr. O.Miguelez foi constrangedora, sua primeira pergunta foi se eu era homossexual. Disse que havia lido meu "curriculum" e que seu filho faria o mesmo estágio em Medicina Fetal que eu havia feito em Paris e que me aconselhava ficar na Medicina.
Para minha surpresa fui aprovado e para meu alívio o Sr. O.Miguelez daria aula somente no segundo ano. Adorava o curso, as leituras, seminários . Foi um grande ano de crescimento pessoal, tinha visitado a India, fui para a Turquia, apaixonei-me, acho que pela primeira vez na vida. E  foi um ano de muita dor; fui vítima de um seqüestro relâmpago na frente do Sedes , sofri violência física como uma coronhada na cabeça e quase perdi a vida.
Dentre os professores do curso , o que  mais aproximei-me pela sua intelectualidade foi o prof. Ede deO., um dos coordenadores, falávamos sempre nos intervalos principalmente sobre cinema e literatura.
O trabalho final do curso seria uma dissertação sobre “Pulsão de Morte” e desenvolvi o tema trabalhando o texto Salomé de Oscar Wilde.Discutiamos entre os colegas e trocavamos nossos trabalhos para um melhor aprimoramento do mesmo. A assistente do coordenador tinha elogiado e gostado de minha escolha.A nota final seria dada em particular, com uma entrevista sobre o progresso pessoal no curso.
A primeira afirmação do meu amigo de café, e coordenador do curso foi que eu fora muitíssimo infeliz na escolha do tema e principalmente do autor, no caso Wilde.Acho que me deu 6, não me lembro; mas  teria que repetir a disciplina. E se eu quisesse continuar no curso, teria que fazer terapia com um psicanalista membro da Sociedade Brasileira , indicado por ele, pois os meus terapeutas não pertenciam à tal Sociedade.
Nunca tinha vivenciado a vida com tanta energia como neste ano. Quando fui seqüestrado, meu terapeuta abriu sua camisa e mostrou uma enorme cicatriz de um assalto, o qual fora vítima como eu. Nunca senti tão amparado por alguém e por este gesto, que diz mais que palavras. Particularmente, tinha o sentimento que caminhava e pisava com dor e alegria no meu DESEJO.
Alguns amigos terapeutas aconselharam-me entrar com recurso, pagar para que outro analista lesse meu trabalho, como o Renato Mezan. Mas o principal problema foi a coação, e a imposição de um terapeuta. Talvez para mudar minha orientação sexual, proporcionar-me o desenvolvimento adequado de minha sexualidade e adequar minhas pulsões e meu desejo às normas sociais e principalmente ao comando e tirania do tal coordenador.Decidi abandonar o curso.
No horizonte de minha estrada pessoal,nasceu o sol com o Teatro. Agora: Ação, Prática. Para o teste da escola de teatro não perguntaram se eu era gay. Pediram que eu imitasse um sapo. Pulei, coaxei e nunca me senti tão feliz. Hoje sou ATOR.

Um grande abraço,

Fabricio


Arte:Fabricio Matheus
Desenho: Silvio Oppenheim que não gostou das alterações que fiz no mesmo, mas como grande amigo permitiu que  publicasse.

Um comentário:

  1. Muito pedagógico, para dizer o mínimo! Incrível sob que águas se escondem ideias tacanhas, hipócritas, desumanas...

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