terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

TENNESSEE AGAIN


“Nem mesmo a chuva tem mãos tão delicadas...”E.E.Cummings

Esta tarde fui ao Museu Lasar Segall, na biblioteca, consultar umas peças e aproveitei para reler “A Margem da vida” com tradução do Flávio Rangel. A peça está datilografada, era de Beatriz Segall, que fez o papel de Amanda; e está cheio de suas rubricas. Há uma memória nas páginas consultadas. Aqueles papéis datilografados participaram dos ensaios, esteve no camarim da atriz, foi lido e relido. Transcrevo o ínicio e o fim da peça, que sempre me serve de estudo. A narração de Tom é carregada de vida, sentimento e poesia.
“...Eu sou cheio de truques e tenho muitos artifícios. Mas sou o oposto de um mágico. Um mágico oferece ilusão com aparência de verdade. Eu lhes dou “a nudez crua da verdade-- sob o manto diáfano da fantasia”.
Eu posso fazer o tempo regredir.Até aquele período difícil...
A peça é memória.
E sendo assim, sua iluminação é suave, sentimental, e não realista. Na memória, tudo parece ser regido pela música;isso explica os violinos ao fundo.
Eu sou o narrador da peça e um de seus personagens. Os outros personagens são minha mãe Amanda, minha irmã Laura e um visitante que aparecerá nas cenas finais.
Ele é o personagem mais realista, pois é o emissário de um mundo do qual nós fomos postos à margem. Mas como todo poeta, eu tenho uma fraqueza por símbolos, assim, mostro esse personagem também como um;como se ele fosse aquilo que sempre esperamos e algo que custa tanto a chegar; como se fosse aquilo porque vivemos.
Há um quinto personagem , que só aparece através de uma fotografia;uma fotografia maior que a realidade. É nosso pai; que nós abandonou há muito tempo. Era um telefonista que se apaixonou pela vida interurbana. Abandonou o emprego e sumiu da cidade como um raio de luz. A última noticia que tivemos dele foram duas palavras num cartão de uma cidade qualquer do México: Oi! Adeus!. Nenhum endereço.
Acho que o resto da peça se explica por ela mesma....
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- Não fui para a Lua... fui para muito mais longe, já que nada separa tanto dois lugares como o tempo. Pouco depois, fui despedido porque estava escrevendo um poema numa caixa de sapatos. Deixei a cidade. Desci os degraus da escada de incêndio pela última vez e a partir daí segui os passos de meu pai, tentando achar no movimento o que estava perdido no espaço.
Viajei muito. As cidades voavam à minha volta como folhas mortas, folhas brilhantemente coloridas mas sem raízes. Eu quis penar , mas era empurrado por alguma coisa. Alguma coisa que me surgia de repente e me pegava de surpresa.Às vezes um trecho de uma música conhecida, às vezes apenas um pedaço de vidro transparente. Às vezes caminhando sozinho numa rua escura, numa cidade estranha, antes de achar companhia. Passo por uma vitrine alegre de uma perfumaria, iluminada com vidrinhos coloridos, como fragmentos de uma arco-íris destruído. E de repente minha irmã me toca o ombro.
Eu me volto e olho aqueles olhos...Oh!Laura, Laura, tentei esquecer você, mas sou mais fiel do que pensava!
Procuro um cigarro, atravesso a rua, entro num cinema ou num bar. Bebo qualquer coisa, converso com a pessoa mais próxima....qualquer coisa que me consiga apagar as suas velas...por que o mundo de hoje é iluminado pelo relâmpago!
Apague suas velas, Laura...e adeus....”


Arte:Fabrício Matheus

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