sábado, 19 de março de 2011

CIANO



Tive um sonho azul. Um tom de azul quase inexistente, azul verde-água em flor de tão azul que era quase verde. Tinha um brilho forte, reluzente purpurina-azul-pavão. E uma transparência em direção ao verde ciano que dava uma profundeza especial a este tom mágico e claro de um azul que azulava em tons de anil degrade ao branco. Este tom de azul permaneceu em minha memória por tempos , que tive a sensação de já o tê-lo esquecido num canto perdido da lembrança... Relógio veloz do tempo, que não espera e passa como um sopro de vento fresco com aroma de verde mata a tocar de mansinho em mim.
Certa vez, ao passar por uma loja de animais, entretive-me com os peixes e fiquei viajando pelos aquários a observar a leveza de peixinhos coloridos. Os mais diversos, a flutuarem na maciez da água, dançando como bailarinos por entre as pedras e plantas que decoravam os aquários. Radiante encontrava-me frente a um espetáculo simples e singelo. Minha memória buscou vasculhando na lembrança passado-infância, que passava rapidamente como um filme; no qual um garoto, eu, pequeno e criança, brincava com peixinhos de um aquário primário, sem oxigênio. Nesta época, minha mãe era diretora de um grupo escolar perto do qual passava um córrego onde costumava fugir para nadar como nos filmes do Tarzã.
O tal córrego, à certa altura, se contorcia numa curva quase perfeita. No lado direito da margem havia um cubo de cimento, que servia de tanque para lavadeiras. Na margem esquerda , havia um bambuzal e uma meia-lua de areia que parecia uma praia encantada, a minha praia encantada. Traçando uma linha em direção ao cubo de cimento , havia um degrau de pedras naturais, quase uma pequena cascata, que formava uma modesta queda d’água , que vinha da nascente em direção ao rio que cortava minha cidade como um espelho, tornando mais encantado para mim este lugar.
Ali, que marquei meu primeiro encontro de amor com minha primeira namorada, e ela faltou!
Deste mesmo fio de água eram colhidos com peneiras pequenos lambaris, cascudos e outras espécies , que os meninos do local ofereciam de presente para minha mãe. Estes iriam povoar o meu aquário, meu pequeno laboratório de experiências mil. Alimentava-os com pequenas bolinhas de miolo de pão. Era freqüente amanhecer um peixinho boiando ou fora do aquário. Com estes comecei minha primeira experiência médica.Neles exercitava a arte cirúrgica com maestria ao utilizar afiados bisturis, que eram as facas de serra para cortar pão e anestesiá-los com seringas de plásticos para rechear frangos. Acreditava na minha sapiência e realmente me esforçava para trazê-los novamente à vida. Enfim, sucumbia-me ao destino e aceitava suas mortes. Colocava –os em caixinhas de fósforos e os enterrava em um pedaço especial do quintal que chamava: - cemitério dos peixes. Após enterrá-los e cobrir-lhes com terra, colocava uma pequena cruz de palitos de dentes e uma florzinha de laranjeira ou jaboticabeira.
Outras vezes , os habitantes do aquário eram os dourados peixes japonês, laranjas, outros pretos... e todas as vivências com peixes foram se passando veloz e novamente pela minha memória. Os peixes comprados no mercado, expostos juntos, uns aos outros, com os olhares fixos e congelados. As pescarias que fui com meu pai, onde eu era o colocador de redes oficial. Pulava nos rios e à medida que mergulhava ia ao longo esticando uma enorme rede de fino náilon. Depois de arrastada, tamanha alegria era vê-la coalhada dos mais diversos peixes. Ainda no barco, separávamos pela raça. Particularmente, adorava atiçar as piranhas para vê-las mordendo semi-mortas, enfurecidas e desordenadas já fora d’água.Era um ódio bonito, um reflexo nervoso. Era a fúria, a luta com a morte que se aproximava lenta e serena.
Uma vez de férias na casa de minha avó, fomos comprar peixes na Cachoeira de Emas para um cozido do almoço do dia seguinte. Na leva dos peixes , tinha um mandi, que se esforçava bravamente para respirar e manter o sopro de vida que ainda pulsava em seu corpo de peixe. Meu primo e eu, rapidamente o transferimos para uma bacia cheia de água e tornamos seus amigos. Ficávamos horas a conversar com o mandi, que tinha um nome que já não me lembro. Ele ficava nadando em círculos contínuos , formando um redemoinho de ondas na superfície da água. Ao nosso menor descuido, fomos encontrá-lo assado sobre a mesa posta. Nossos olhos encharcaram de lágrimas ao ver nosso mandi coberto com um molho de extrato de tomate e cebola, e a boca aberta como se quisesse gritar algo que nunca descobrimos. Recusamos a comer naquele dia, a sentar na mesa onde se devorava nosso amigo.
O segredo do mandi se dissolveu como um papel molhado em minha memória. E ao puxar as lembranças como um ilusionista a retirar lenços coloridos de uma caixa mágica, lembrei de minha professora do primário que certa vez passou uma lição de casa: Um peixe para colorir. Minha mãe sugeriu para cobrir o peixe de escamas. Fui colando uma a uma. Dando ao peixe um tom prateado de cinza que percorria do azul ao branco. O peixe ficou tão lindo que como por encanto tornou-se vivo e começou a soltar lentas e leves borbulhas. Ao inundar-me delas saiu nadando para não sei onde. Talvez para o mundo mágico do fundo das águas, povoados de seres misteriosos, sereias encantadas, polvos, arraias... e todos os outros seres carregados de encanto que fascinam e seduzem as crianças. Tudo isso aconteceu depois que o peixe colorido e prateado ficou exposto para meu orgulho na escola.
De repente, o tom de azul sublime do meu sonho, tornou a azular meu pensamento, como recordações trazidas pelo aroma de um perfume. Fixei meu olhar num peixinho que tinha aquele azul indescritível quase imperceptível que havia sonhado.Encontrei-me neste momento num estado de inércia e deslumbre, como se nada pensasse, e tudo o já pensado à pouco, passasse ligeiro como apertar a tecla “foward” de um gravador. Todos os peixes que passaram pela minha vida, inclusive aquele que colei escamas e que saiu a nadar, misturavam-se com meu sonho azul naquele peixinho Betta que ficava sozinho em seu pequeno aquário.
O meu pensamento era um só: Este peixe têm que ser meu. E na indecisão constante que povoa o universo de um aquariano com ascendente em peixes. Confundiam os conflitos de meu cotidiano urbano, o progresso veloz que reduz o tempo, o dia-a –dia cada vez mais máquina a nos transformar em seres petrificados, mecânicos e práticos, necessário para acompanhar o desenvolvimento desenfreado que nos devora e consome nossos mais ingênuos sonhos. Será que terei tempo para cuidar de um peixe? Mesmo que seja um peixe com aquele tom de fantasia azul...
Dirigi-me a vendedora com ânsia voraz de sanar minha ignorância em relação à piscicultura ornamental. Informei-me sobre cada detalhe à respeito daquele pequeno ser aquático , teleósteo da família dos pantodontídeos, com o pequeno aquário e o dito junto ao peito para que ninguém o levasse.
Descobri que este tipo de peixe permanece sozinho em um aquário, não necessitando de aparelhagem complexa como termômetro, respiradores, oxigenadores e etc... pois os mesmos sobem à superfície, soltam uma bolha e aspira o ar da bolha, reciclando seus gazes respiratórios. Caso veja sua imagem ou outro semelhante , ele se expande abrindo as barbatanas e a cauda, insufla as brânquias e fosforece o tom mais intenso, carregado de mistério de sua cor particular: infinito, de uma irisdecência tempestuosa de tanta cor.
Se posto com outro macho da mesma espécie, eles digladiam até a morte de um, coroar a vitória do outro. A fêmea, menos atraente, deve permanecer com o macho somente para a fecundação e até a desova, pois ao findar este período, o convívio com o parceiro sela um trágico destino à mesma.
A sua essência é de uma solidão tão intensa, quase assombrosa , que tem um leve tom de azul. Quanto mais me doía a solidão estarrecida daquele ser, tanto mais o desejava. Nele via-me frente a um espelho, a observar todo o azul profundo de minha própria solidão.
Naquele pequeno espaço-mundo, limitado por quatro planos de vidro e preenchido de água, estava um ser que vivia o azulão impetuoso de sua solidão. Rodeado por um tudo de objetos naquela loja, aquele peixinho era um pontinho cintilante a refletir minha vida tão só...seu aquário era o meu apartamento.
Olhava os outros peixes semelhantes e com outras cores tão lindas e admiráveis quanto aquele azul cianofíceas, certamente a buscar um consolo que me envolvesse fazendo desistir daquele que tinha o tom da cor do meu sonho.
Do peito, trouxe seu aquário ao horizonte de meus olhos.Subitamente, ele aproximou-se do plano de vidro que estava defronte à direção do meu olhar e me encarou. Seus lábios mexiam suave como lábios de peixe que eram. Às vezes saiam borbulhas que subiam lentas de leves pertubando a paz estática e estável da película d’água e explodiam no nada do ar. Fiquei pasmo a contemplá-lo.
Seu rosto era estranho, e por ser pequeno, difícil de notar os detalhes que passavam desapercebidos aos olhos comuns que haviam de achá-lo sempre com um rosto pisciforme e sem graça. Mas seus traços, pequenos seixos , rudes, ásperos, reuniam minúcias dispersas num todo que o assemelhavam a um ser pré-histórico. Seus lábios eram grossos, carnudos. Sendo a porção superior, maior , e com concavidade voltada para baixo, deixando a mostra um tico de lábio inferior. Entreabriam-se juntos num círculo maior que diminuía gradativamente como um funil.
Os olhos , duas pérolas negras ilhadas por um dourado com riscos de prata que se tronava azul inferiormente, um enigma. Sob as narinas , uma protuberância pteriforme, que parecia ter sido esculpida em uma pedra castanho-avermelhada coberta de liquens, o que lhe conferia um aspecto sombrio, obscuro.
Olhamos por tanto e pouco tempo que a vendedora perplexa já não entendia nada, dando-me por louco, alucinado; pois, quando dei por mim, estava desnorteado a movimentar meus lábios e a soprar o ar como fazia o peixe.
Este peixe sou eu, pensava , e findei por instantes meu desvariu, para concluir o ato da compra.
No caminho para casa fui pensando um nome para aquele peixinho: - Azul, Safira, Esmeralda, Blue.... e como possuía um tom de azul quase verde, lembrei das cianofíceas e batizei com o nome de Ciano, que soava semelhante a Cyrano, trazendo-me a lembrança um personagem que viveu sua solidão repleto de amor a transbordar d’alma. Assim era eu, assim era o peixe; seres só, de alma azul. Seres indescritíveis e suaves como nuvens macias de algodão que desaparecem lentas.À medida ,que surgem tímidas no céu, as estrelas a polvilharem de brilho a noite de luar, que prateia as cabeleiras recostadas dos amantes: Nossa solidão era irmã-gêmea da poesia e sufocada de tanto , tanto sentimento...
Coloquei Ciano sobre o freezer, na sal de jantar do meu apartamento. Algumas vezes sua solidão parecia aumentar, tão pequeno e solitário era estar sobre o freezer cercado de paredes azulejadas que não eram nem azuis, nem cinzas, mas não deixava de ter estes tons.
Ao olhá-lo, tinha certeza de que ele também observava tudo, e que sabia da existência da mesa, cadeiras, geladeira, armário e até do telefone que se encontrava no recinto ao lado do freezer e quase nunca tocava.Cada vez, minha certeza aumentava, a ponto de crer que ele entendia, ou melhor, sabia o que eu falava e com quem ...
Passava horas a observar seus movimentos flutuantes naquele pequeno espaço. De repente, subia à superfície à procura de ar e voltava leve novamente ao fundo. Olhava-me tão profundamente que ao olhá-lo estava a refletir à medida que flashes de minha vida explodiam, como bombas de São João, ou fogos de artifícios coloridos e brilhantes a romper a escuridão da noite na massa cerebral de minha memória sabor de mel.
De súbito iniciava movimentos rápidos, rasantes, às vezes desordenados, percorrendo velozmente o pequeno espaço que o continha, como se explorasse milímetro por milímetro, para depois voltar a flutuar parado ou reclinar-se nas brancas pedrinhas que forravam o chão de seu espaço.
Outra vezes, ficava a brincar com ele. Pegava um espelho e o fazia refletir. Ciano, ao espelhar-se achava que era um inimigo e não suportando sua própria imagem, alastrava-se num tom mais azul que o seu normal, tremeluzindo em movimentos serpentiformes pro toda a área refletora. Suas guelras formavam um plano perpendicular com seu corpo esguio, e seu pequeno pulmão aparecia róseo, vermelho, incandescente como meu coração quando estou apaixonado.Nestes momentos, eu começava também a tremular como Ciano.
Parecia que me olhava intensamente, e todos os meus medos, meus anseios estavam ali a olhar-me de frente. Retornava ao real abrindo devagar as pálpebras , até expor meus olhos molhados de lágrimas. .. eu tinha certeza que os olhos de Ciano, como os meus, também estavam em lágrimas, que se misturavam com o líquido fluído que o cercava. Respirava!irava rapidamente o espelho, e ele perdido, encolhia-se devagar, lento , ofegante num canto do aquário e adormecia como eu.
Encontrava-me constantemente numa inquietude sã a inventar maneiras de o distrair. Colocava o espelho sob o aquário com a face espelhada voltada para o fundo. Ciano permanecia imóvel, pois peixe não olha para cima. Peixe não têm céu...
Apagava as luzes da sala de jantar e acendia uma pequena lanterna de baixo para cima, de tal forma, ao refletir no espelho, fazer brotar um foco de luz que atravessava a água do aquário iluminando-o como um palco encantado. Apertava o descanso do telefone, que tocava suave, e da caixinha de música soava o tema de amor de “Romeu e Julieta”. Ciano, dissimuladamente, tornava-se mais e mais azul, como uma estrela azulada ou o azul brilhante das asas de algumas borboletas.
Azul tingido de uma beleza sublime, quase santa, cerúleo, e que se tornava mais belo ao estar iluminado e bailando sob refletores, quase voando como uma pluma a descer devagarinho no ar. Todo seu corpo dançava, suas barbatanas e seu rabo a ondular e movimentar mansamente a água que brilhava como mil diamantes e espalhar luzes e reflexos em todas as direções. Era pura arte, técnica e emoção em perfeito equilibrio, carregado de todos os sentimentos que nutrem as paixões e que tanto nos comovem na Arte.
Ao olhá-lo, eu lia poesia, prosa. Assistia cinema, teatro, ópera, televisão, balé. Estava diante de uma tela pintada por uma força de dimensões inatingíveis. Fechava os olhos e tentava na condição de pequeno mortal, imitar o que meus olhos viam trêmulos de afeto e emoção.
Cada vez que me aproximava dos movimentos de Ciano, e quanto mais o olhava, mais sua solidão me doía menos. Eu passará a compreender melhor o quão simples era o milagre da vida. Tão simples, como os movimentos, como a vida de Ciano. E ao compreender este simples e grande milagre, aos poucos, coloria de um outro tom de azul, minha vida, riacho d’água em direção a um oceano iluminado quase transparente de tom tão azul.
Incomodava-me o fato de alimentá-lo. A vendedora havia orientado para alimentá-lo somente após dois dias, ou a cada dois dias. Eu olhava atentamente o seu aquário, com águas enevoadas de um verde vago, indeciso, que não se deixava notar qualquer sinal de desfeito da sujeira que caracterizasse a geléia de artérias que era a sua ração. Sua alimentação, combinava idéias num raciocínio lógico, matemático até: Geléia de artérias que conduzem o sangue que oxigena os tecidos e permite a vida. Ciano alimentava-se de vida para viver... O meu desespero conjugava sentimentos de pai, mãe, irmão e amigo; aumentando cada vez mais por desconhecer suas necessidades vitais. Se estava ou não com fome? Olhava novamente a água , tentando iludir-me, mas sequer um cisco,modesto, podia ser notado por entre as brancas pedrinhas que atapetavam o chão do aquário.
Não resistindo a tentação que tanto me angustiava, peguei o pote de geléia de artérias que guardava na geladeira de frente ao freezer. Raspei um pouquinho com uma faca e coloquei no canto do aquário. As pequenas partículas iam caindo como chuvas e Ciano permanecia inerte, indiferente, sem se mover. Tamanha minha frustração, que se confundia num desalento pueril a torturar-me com inúmeras questões:- Será que ele não gosta mais de geléia de artérias? Será que venderam-me um produto estragado?Será que ele esta bem? Será que está doente e sem fome? Será que não gosta mais de mim?... Ficava olhando e conversando com Ciano, mas nada dele abocanhar as migalhas de vida. Ele permanecia igual, parado; às vezes descansando sobre as brancas pedrinhas , outras flutuando gracioso, delicado ou nadando de inesperado.
De vez em quando, voltava a brincar de espelhá-lo e ele estatelar aquele azul com sabor de felicidade. Ai me tranqüilizava. O mesmo Ciano dantes, pleno da mesma solidão cor de azul que lhe era peculiar.
De madrugada, acordei assustado, e corri para a sala de jantar. Lá estava ele a olhar-me com os olhos que faço quando estou faminto. Deslocava de impulso, um pulo à geladeira e pegava o pote de geléia de artérias. Raspava um pouquinho e colocava no canto do aquário, à medida que caíam , Ciano se refestelava com uma doçura, uma satisfação... Observava maravilhado sua mímica e expressão facial, às vezes, parecia que mastigava e logo após, como num sopro, lançava pequenos fragmentos que os sorviam posteriormente, expressando o melhor sabor do mundo. Outras, parecia fazer caretas homéricas. Era engraçado e doce observá-lo comer, pois todos os gestos e movimentos se harmonizavam, tamanha delicadeza e precisão e minúcia dos mesmos. Os olhares que ele fazia, como se estivesse incomodado, ou como a convidar para saborear a vida da geléia de artérias.
Uma vez, toquei de leve, com a ponta do dedo indicador, aquela gelatina de um marrom quase vermelho, e lambi com uma suavidade quase obscena e até que não achei ruim de todo.
Olhamos nos novamente e sorríamos como duas crianças lambuzadas de geléia de artérias, plenos de vida. .. Fiquei aliviado de felicidade de podê-lo alimentar. Era como saber que nada interferisse no seu meio, na sua solidão. E assim, eu o teria ainda por mais dois dias.
Mas logo, e de novo, me afligiam as dúvidas: Será que Ciano está comendo demais? E se ficar obeso? Não há espaço suficiente para exercitar e manter a forma. Poderá morrer de tanta gula ou indigestão?
Mas aos poucos fomos nos conhecendo, fui me conhecendo e conhecendo Ciano.Notei por exemplo, que ao levá-lo a fúria frente aos meus medos, quando o espelhava, ele retornava acelerado à superfície para respirar. Concluí que dispendia mais energia, assim , todos os dias o fazia insuflar o mais belo azul e soltar bolhinhas de ar que caminhavam até a margem do aquário e se agrupavam num canto , formando uma fímbria, como pérolas de ar.
Como um soprar , carregado de frescor do tempo que passa, fui convivendo mais pacificamente com minha solidão, meus medos. Cada vez mais , eu assemelhava-me a Ciano e ele à mim. Como se guardasse o segredo de minha vida dentro daquele peixinho azul.
Quanto mais eu vivia, mais poesia ressoava em melodia, como um som ao longe, de uma harpa mágica, tingindo em tons azuis aquele serzinho, o meu serzinho. Estavamos, mais e mais em consonância, tínhamos um diálogo que era só nosso, e nos entendíamos como ninguém. As perguntas que antes me atormentavam, aos poucos, foram esvaecendo como brumas e espumas de ondas do mar que a areia absorve.Conversávamos com os olhos no mesmo tom de cor.
Quando chegava perto do aquário olhava-o de cima, e ele vinha a tona como que a me saudar. Eu já sabia o quanto de geléia o satisfazia e quando. Extraordinariamente, Ciano tornou-se eu, meu espelho, minha alma, minha aura. Assim seus tons modificavam corando-se dos mais diversos azuis que existem, conforme meus diversos sentimentos e humores.
Ciano era minha amarga solidão que aos poucos foi se adocicando com a sua presença. Como se olhasse algo que de mim fugia. Uma dor que me doía e que agora doía menos. Ciano foi me ensinando com poesia e cor a ser feliz.
Jamais esquecerei o dia em que me descobri amando, enamorado, divino, inebriado de emoção com o coração palpitando à boca. Cheguei em casa cantando uma canção de amor, com o sorriso de orelha a orelha, e a inércia boba , quase infantil, cheia de pureza do ser apaixonado. Olhei-o com um brilho impetuoso , num olhar que ardia mais que o sol, e vi Ciano arrepiar-se num azul transcendental, imaculado. O mais doce e musical tom de azul celestial. Luzidio, quase transparente tom do azul mais azul dos azuis que há.
Ele me olhou certeiro, com o mesmo contentamento e certamente seu coração batia tão rápido e acelerado quanto o meu. Seu olhar era intenso, tão intenso, quanto o dourado que irradiava de meus olhos, mas continha lá num canto perdido de seu olhar uma lágrima quase invisível, que só eu podia vê-la e que se tornava mais clara quando eu fechei meus olhos.
Aquela lágrima tinha um misto de prazer e dor, tristeza e despedida, saudade, talvez. Mas se dispersou com o deslumbramento de alma em que me encontrava.
Adormeci exausto, cansado de tanto sentimento, sem nada sonhar, pois meu sonho agora era vivo e real. Eu amava. Estava amando e era correspondido. Não me sentia mais só. Agora eu dividia com alguém minha alegria, minha dor, minha vida...
No meio escuro da noite, acordei de sobressalto. Assustado, suando. Fui caminhando sem pressa até a sala de jantar. Logo avistei Ciano a transluzir sob a água, pairado a boiar sereno entre a bolhinhas de pérolas da superfície do aquário. Com os olhos estáticos, como o mundo visto de longe e com o olhar mais longe ainda.
Tirei-o delicadamente e o pousei sobre a mesa. Olhava-o com as mesmas lágrimas salgadas de mar que notei em seus olhos, e murmurava baixinho seu nome azul.
Estava sentindo não sei dizer o quê, que me doía de leve e profundo no meu coração, na minha alma, no meu ser. Fiquei a observá-lo minuciosamente como na primeira vez, e o seu tom de azul profundo foi tornando-se róseo luz, indecifrável, quase para um roxo, violáceo, purpúreo e suave . Mais suave ainda com um pouco de azul que aos poucos ia-se perdendo num branco quase prata. Penumbra com tons de cinza claro. Entre lágrimas de amor, os tons de cinza claro azulado, como mágica, foram perdendo aos poucos o azul. Lentamente ensombrecia. E o cinza claro , pouco a pouco tornava-se mais escuro. Tons de cinza escuro, aos poucos, quase negros, até anoitecer....

*Escrevi esta história em 92.

Um comentário: