“Hiato é quando as palavras se foram”Gilles Deleuze
“Se é impossível pensar sem nada saber, é que só é possível
pensar graças a memória. Mas pensar é quase sempre inventar
o que se pensa. Foi por saber o que era a memória, que
percebi que
ela era mais do que eu sabia dela. Descobri-a como
constitutiva do meu presente.
A memória me permite inventar o futuro de que me lembrarei,
como passado, futuramente.” Ferreira Gullar
Primeiro ele esqueceu a senha do banco. Depois trocou o nome
da tia Dirce por tia Rute. E ele conhece muito bem a tia Dirce e a tia Rute.
Depois , pensando em ganhar dinheiro, foi vítima do golpe
dos aposentados. Recebeu uma carta, que ele cria ser verdadeira e sequer tinha
o número do CNPJ da empresa ou o número de OAB do advogado e ele fez um
depósito, antes de receber o dinheiro prometido.
Certamente, somando –se
a estes fatos, uma leve melancolia e desânimo, descuido com a higiene
pessoal e um certo mal humor percebi que meu pai não estava bem ... que ele
estava se perdendo ao perder sua memória.
Trouxe para consultar um neurologista em São Paulo, antes da
consulta, a Ressonância Magnética mostrou uma atrofia do lobo frontal. Exames
complementares somaram-se uma degeneração senil em seu pesado corpo.
Arritmia cardíaca, estenoses arteriais das pernas, dor ao
andar...
Nas conversas diárias , nota-se uma melhora geral no seu
ânimo.
Na consulta, seu silêncio, e sua demora para se recordar de
um jogo de palavras, repetir algumas palavras, desenhar um relógio com as horas
solicitadas pelo médico, pareciam uma eternidade para minha mãe e eu. Foram
segundos, ou minutos de um sufoco, que parecia estender-se num tempo
inexplicável.
Novos exames foram solicitados, inclusive uma avaliação
psicológica.
Na avaliação psicológica, foram duas horas em que minha mãe
e eu esperamos como se se passasse séculos.
Entremeios aos retornos e novos exames , íamos nos lembrando
da história de nossa família e outras lembranças. Para isso a memória de meu
pai, estava melhor de que a de minha mãe e a minha própria.
Lemos junto livros “Como melhorar a sua memória” , “A
memória”, “O cérebro desconhecido”, entre outros...Fazíamos exercícios, meu pai
passou a desenhar mais e mais relógios.
É um mistério, uma vez , no carro começamos a cantar uma
antiga música do Adoniran Barbosa, que tocava no rádio e meu pai lembrou-se de
toda a letra.
Enfim, terminamos todos os exames solicitados, as
ressonâncias com raioisótopos, mas exames sanguíneos e outros....
Não era Alzheimer ,
que é definido como uma atrofia dos
lobos temporais. Era uma demência inicial num homem de 74 anos, obeso,
hipertenso, diabético e meu pai .
A atrofia do lobo
frontal permaneceu em todos os outros exames, o que indicava a chamada
“Síndrome do velho ranzinza”, por ser médico toda esta peregrinação desde a
marcação a realização de exames e as
consultas médicas, foi muito mais fácil.
O que de certa forma deixou meu pai mais orgulhoso de ter um
filho médico. E que segundo eu já escrevi e repito, acho que minha maior função
como médico e ajudar os meus próximos a morrer melhor.
Neste período fizemos uma viagem para a cidade natal de meu
pai, Pirassununga, no interior de São Paulo. Visitamos as casas onde morou, que
ficam no mesmo quarteirão , no centro perto da Igreja onde se casou, da escola
onde estudou, do bar onde trabalhou, do local que era o cinema, que também
trabalhou.
Fomos no CAP, onde jogava bola. Como a praça central estava
fechada para reformar, não pudemos esperar pela banda do domingo a noite no
coreto.
Na missa , meu pai encontrou velhos amigos, parentes e por
coincidência, era a missa de sétimo dia de uma de suas tias, a Mariana.
Fomos ao cemitério,
onde estão enterrados meus avôs, seu irmão, cunhado e tantos conhecidos.
Almoçamos na Cachoeira de Emas, passamos na chácara de minha tia, sua irmã e
voltamos a São Paulo.
Meu pai, já em São Paulo, começou seu tratamento, para
melhorar sua memória. E outros , mais difíceis, como perder peso e caminhar, já
que a comida em minha família têm o mesmo significado da palavra Amor.
Meu pai retornará em breve para novos exames e consultas.
Segundo ele , minha mãe e minha irmã, seu estado está melhor em todos os
sentidos... e eu espero que isso seja uma verdade no nosso novo encontro.
Independente do que venha acontecer, há um processo degenerativo
instalado no cérebro de meu pai, irreversível... Isso não significa que ele morrerá disto,
que iremos morrer, tanto ele como eu, é fato.
Enquanto isso não acontecer, seguimos como sempre, sem
rancores e próximos. Eu cada dia mais parecido com meus genitores; de certa
forma, nossa união é uma despedida sem se despedir, é um transformar o tempo
com memórias, lembranças e muitas risadas.
Agora como crianças, juntos ,vamos desenhando cada vez mais
os relógios que a memória de meu pai esqueceu no dia de sua consulta.
Fotos:Fabricio Matheus
Lindo, lindo! E para não sofrer com culpas infundadas e improdutivas, é preciso ter clara consciência de q é só nosso caminho, q cada um tem de fazer o q tem de fazer, p o bem ou para o mal. Só isso.
ResponderExcluirAos 80 anos recém completados e sofrendo da mesma doença que seu pai, minha mãe executa sonatas inteiras de Chopin ao piano sem titubear, mas não consegue acertar de primeira o nome dos filhos ou de objetos banais do cotidiano como um garfo e uma faca.
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