domingo, 9 de setembro de 2012

A MEMÓRIA DE MEU PAI



“Hiato é quando as palavras se foram”Gilles Deleuze

“Se é impossível pensar sem nada saber, é que só é possível
pensar graças a memória. Mas pensar é quase sempre inventar
o que se pensa. Foi por saber o que era a memória, que percebi que
ela era mais do que eu sabia dela. Descobri-a como constitutiva do meu presente.
A memória me permite inventar o futuro de que me lembrarei, como passado, futuramente.” Ferreira Gullar


Primeiro ele esqueceu a senha do banco. Depois trocou o nome da tia Dirce por tia Rute. E ele conhece muito bem a tia Dirce e a tia Rute.
Depois , pensando em ganhar dinheiro, foi vítima do golpe dos aposentados. Recebeu uma carta, que ele cria ser verdadeira e sequer tinha o número do CNPJ da empresa ou o número de OAB do advogado e ele fez um depósito, antes de receber o dinheiro prometido.
Certamente, somando –se  a estes fatos, uma leve melancolia e desânimo, descuido com a higiene pessoal e um certo mal humor percebi que meu pai não estava bem ... que ele estava se perdendo ao perder sua memória.
Trouxe para consultar um neurologista em São Paulo, antes da consulta, a Ressonância Magnética mostrou uma atrofia do lobo frontal. Exames complementares somaram-se uma degeneração senil em seu pesado corpo.
Arritmia cardíaca, estenoses arteriais das pernas, dor ao andar...
Nas conversas diárias , nota-se uma melhora geral no seu ânimo.
Na consulta, seu silêncio, e sua demora para se recordar de um jogo de palavras, repetir algumas palavras, desenhar um relógio com as horas solicitadas pelo médico, pareciam uma eternidade para minha mãe e eu. Foram segundos, ou minutos de um sufoco, que parecia estender-se num tempo inexplicável.
Novos exames foram solicitados, inclusive uma avaliação psicológica.
Na avaliação psicológica, foram duas horas em que minha mãe e eu esperamos como se se passasse séculos.
Entremeios aos retornos e novos exames , íamos nos lembrando da história de nossa família e outras lembranças. Para isso a memória de meu pai, estava melhor de que a de minha mãe e a minha própria.
Lemos junto livros “Como melhorar a sua memória” , “A memória”, “O cérebro desconhecido”, entre outros...Fazíamos exercícios, meu pai passou a desenhar mais e mais relógios.
É um mistério, uma vez , no carro começamos a cantar uma antiga música do Adoniran Barbosa, que tocava no rádio e meu pai lembrou-se de toda a letra.
Enfim, terminamos todos os exames solicitados, as ressonâncias com raioisótopos, mas exames sanguíneos e outros....
  Não era Alzheimer , que  é definido como uma atrofia dos lobos temporais. Era uma demência inicial num homem de 74 anos, obeso, hipertenso, diabético e meu pai .
 A atrofia do lobo frontal permaneceu em todos os outros exames, o que indicava a chamada “Síndrome do velho ranzinza”, por ser médico toda esta peregrinação desde a marcação a realização de exames e  as consultas médicas, foi muito mais fácil.
O que de certa forma deixou meu pai mais orgulhoso de ter um filho médico. E que segundo eu já escrevi e repito, acho que minha maior função como médico e ajudar os meus próximos a morrer melhor.
Neste período fizemos uma viagem para a cidade natal de meu pai, Pirassununga, no interior de São Paulo. Visitamos as casas onde morou, que ficam no mesmo quarteirão , no centro perto da Igreja onde se casou, da escola onde estudou, do bar onde trabalhou, do local que era o cinema, que também trabalhou.
Fomos no CAP, onde jogava bola. Como a praça central estava fechada para reformar, não pudemos esperar pela banda do domingo a noite no coreto.
Na missa , meu pai encontrou velhos amigos, parentes e por coincidência, era a missa de sétimo dia de uma de suas tias, a Mariana.
Fomos ao cemitério,  onde estão enterrados meus avôs, seu irmão, cunhado e tantos conhecidos. Almoçamos na Cachoeira de Emas, passamos na chácara de minha tia, sua irmã e voltamos a São Paulo.
Meu pai, já em São Paulo, começou seu tratamento, para melhorar sua memória. E outros , mais difíceis, como perder peso e caminhar, já que a comida em minha família têm o mesmo significado da palavra Amor.
Meu pai retornará em breve para novos exames e consultas. Segundo ele , minha mãe e minha irmã, seu estado está melhor em todos os sentidos... e eu espero que isso seja uma verdade no nosso novo encontro.
Independente do que venha acontecer, há um processo degenerativo instalado no cérebro de meu pai, irreversível...   Isso não significa que ele morrerá disto, que iremos morrer, tanto ele como eu, é fato.
Enquanto isso não acontecer, seguimos como sempre, sem rancores e próximos. Eu cada dia mais parecido com meus genitores; de certa forma, nossa união é uma despedida sem se despedir, é um transformar o tempo com memórias, lembranças e muitas risadas.
Agora como crianças, juntos ,vamos desenhando cada vez mais os relógios que a memória de meu pai esqueceu no dia de sua consulta.

Fotos:Fabricio Matheus








2 comentários:

  1. Lindo, lindo! E para não sofrer com culpas infundadas e improdutivas, é preciso ter clara consciência de q é só nosso caminho, q cada um tem de fazer o q tem de fazer, p o bem ou para o mal. Só isso.

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  2. Aos 80 anos recém completados e sofrendo da mesma doença que seu pai, minha mãe executa sonatas inteiras de Chopin ao piano sem titubear, mas não consegue acertar de primeira o nome dos filhos ou de objetos banais do cotidiano como um garfo e uma faca.

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